Um peixe amarelo
Eremita
O estado de irritação tem a propriedade de modular os nossos defeitos e qualidades, sendo capaz de insuflar de coragem passageira um cobarde ou de tornar algo estúpida a prosa de alguém que tende a ser inteligente todas as semanas. João Pedro George, ao gozar com o cortejo de admiradores de Herberto Helder, irritou António Guerreiro, que lhe respondeu com despropositada sobranceria. A tese de George é muito simples: os gestos tardios de Herberto Helder, em aparente contradição com a forma como tentou retirar da sua obra qualquer registo da sua biografia que não fosse mediado exclusivamente pela sua poesia, foram a única forma possível de honrar esse percurso. Isto porque facilmente uma coisa se transforma no seu contrário e não é difícil perceber que um esforço activo, prolongado e radical pela ausência de protagonismo é de tal forma distintivo que acrescenta celebridade. Saber se foi mesmo por isso ou por qualquer contradição insondável da alma que Herberto Helder, pouco tempo antes de morrer, tolerou o marketing da maior editora portuguesa e se deixou fotografar pelo Expresso estará sempre sujeito a interpretação e os efeitos práticos de tais gestos serão certamente questionáveis, mas a citação de Herberto Helder (de 1966) referida por George não poderia ser mais premonitória: "Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento". Devemos pois admitir que Guerreiro não compreendeu - ou fingiu não compreender - a "espécie de fidelidade" de Herberto Helder, nem se lembrou de o que o autor escreveu sobre "a lei da metamorfose".