Tiro ao artista em tempos de crise
Eremita
Os ignorantes filistinos e alguns dos muito cultos sofisticados que se dedicam à preservação do património cultural têm um ódio de estimação comum: os artistas contemporâneos. Os primeiros acham que a arte só deve vingar se tiver valor comercial e os segundos imaginam-na como um passatempo de aristocrata ou burguês endinheirado. Há uma regra que me parece muito válida: sempre que pessoas com características opostas estão de acordo relativamente a um tema que não é consensual, detectámos um caso complexo. A crónica de hoje de Pacheco Pereira é infame porque se percebe que o seu principal interesse não é ajudar os feirantes mas atacar os artistas, esses subsídiodependentes. Fazê-lo num momento de crise profunda, que se anuncia prolongada, e quando o ministério da cultura está nas mãos de alguém incapaz e sem peso político, foi uma verdadeira sacanice. Foi também bastante estúpido, porque muitos artistas contemporâneos dão trabalho a pessoas — penso nos roadies dos cantores, por exemplo — que, pela actividade precária, itinerante e sazonal, e ainda o desprestígio social, são tão "ignorados" e tão "invisíveis" como os feirantes que o cronista usa para atacar os artistas. "Mau trabalho", Pacheco, muito mau trabalho.
Os dias da pandemia mostraram, mais uma vez, a força dos preconceitos sociais no modo como duas comunidades atingidas pela crise económica são tratadas: a da cultura e a dos feirantes e itinerantes. Os artistas, trabalhadores da cultura, músicos, actores, “criativos”, etc., são um sector em que predomina o trabalho precário, e foram de imediato atingidos pelo confinamento e pelo encerramento dos espectáculos. Mas, sem contestar a dureza da crise, têm várias coisas a seu favor: uma é a grande visibilidade na comunicação social, um tratamento muito favorável (capas, variadas fotografias, artigos, etc., por exemplo só no PÚBLICO), que funciona como forma de pressão sobre o poder político, que tende a responder a quem tem mais voz mediática.
Acresce que é um sector fortemente subsidiado por Governos e autarquias, em que não há qualquer escrutínio, porque este é difícil para certas actividades criativas, mas também porque a pequenez do meio favorece o silenciamento das críticas por parte dos pares. Se apenas uma pequena parte das críticas que são feitas em privado, em conversas, fosse pública, ver-se-ia como é feito um julgamento muito duro das qualidades criativas e do valor de muitas “obras” e “artistas”, mesmo descontando a inveja do sucesso alheio, que também é muita. Acresce o facto de muitos serem jovens e, queira-se ou não, os jovens têm sempre uma vantagem e mais oportunidades do que as pessoas mais velhas. Mas a cultura é hoje um sector económico e mesmo industrial, e pode e deve ser tratado sem o mito da intangibilidade da criação, que é também uma expressão corporativa. Em contraste, o sector dos feirantes e itinerantes, constituído, na maioria dos casos, por pessoas mais velhas e famílias inteiras, viu-se, de um dia para o outro, sem modo de vida. São os feirantes propriamente ditos, mas também os que fazem a vida com diversões de Verão, que transportam de terra em terra carrosséis, carrinhos de feira, circos, e vendedores itinerantes, todos dependendo de ajuntamentos e de “feiras”. Não é uma vida fácil e há nela muita pobreza. Pacheco Pereira