Tiro ao Livre
Eremita
Suspeito que não votei no Livre precisamente por causa das críticas que João Júlio Cerqueira fez. O Livre entendeu que seria uma boa ideia amarrar-se à política identitária e a coisa correu-lhe bem. É muito provável que cresça agora por ser a némesis natural do Chega. Aliás, um cínico diria que Rui Tavares está a dar baile a toda a gente e sabe muito bem o que pretende ganhar com a sua diabolização aberta de André Ventura, mas seria preferível que estas manobras de mediatismo e a fixação identitária de Katar Moreira nos permitissem também ouvir o discurso estruturado de Rui Tavares sobre a Europa, a menos que o Livre queira continuar a ser um partido boutique com um grupo parlamentar de 1 a 3 deputados.
Entretanto, contaram-me que Katar Moreira tem sido atacada nas redes sociais com uma violência e deselegância incomuns. Nas minhas breves leituras da opinião publicada, também vou notando uma irritação a crescer nos dentes que parece toldar o raciocínio. É assim provável que a chegada ao Parlamento de Joacine Katar Moreira esteja para a direita ideológica que vocifera contra as políticas identitárias como a eleição de algum presidente trapalhão para os humoristas profissionais, isto é, simplifica-lhes tanto trabalho que eles se vão tornando displicentes. Vejamos dois exemplos.
Houve quem achasse escandaloso que Joacine Katar Moreira festejasse a eleição para o parlamento junto à bandeira da Guiné. Eu achei ridículo, mas sou suspeito. Acho sempre ridículo que alguém exalte o país a cuja miséria fugiu em detrimento do país que lhe permitiu prosperar . Alberto Gonçalves, Observador
Tenha calma, homem [Rui Tavares], como a sua própria experiência demonstra, não basta ser eleito uma vez para condicionar os votos dos eleitores no futuro, é preciso fazer alguma coisa que os eleitores reconheçam como útil para ganhar a eleição seguinte. Henrique Pereira dos Santos, Corta-Fitas
Admitindo que não é por falta de escrúpulos, como se explica que pessoas capazes escrevam coisas tão estúpidas ou ignorantes? Só pode ser mesmo a irritação que o Livre causa. Obviamente, podendo a bandeira da Guiné-Bissau representar o povo guineense e não o Estado, e aceitando-se que uma pessoa pode ter laços fortes a dois países, o Alberto passa de fino ironista a demagogo nacionalista que só não usa o "volta para a tua terra" para não desvirtuar o seu esmerado estilo. E ainda obviamente, Henrique Pereira dos Santos aposta na distracção ou falta de memória dos seus leitores, porque a explicação mais simples para o falhanço da candidatura de Rui Tavares em 2014 foi a mudança de partido. Em 2009 concorreu pelo já então sólido Bloco de Esquerda e em 2014 pelo recém-formado Livre e, na prática, tendo em conta os ataques de Louçã, contra o Bloco. Também a boca de que Rui Tavares não fez nada ("de útil") quando esteve no Parlamento Europeu (2009-2014) é insustentável. Rui Tavares, apesar de ter pertencido a dois grupos parlamentares pequenos, o que reduz a margem de actuação de um eurodeputado, foi muito activo (1, 2), tendo produzido mais relatórios num mandato do que muitos farão em três, e é o autor de um relatório marcante sobre os abusos de Viktor Orbán que foi adoptado pelo Parlamento Europeu e é hoje conhecido como o "Tavares report". Haverá mais algum relatório hoje designado nos media pelo apelido de um outro eurodeputado português? Enfim, a ideia de que os portugueses votam para o Parlamento Europeu em função da prestação dos eurodeputados no mandato anterior não faz qualquer sentido e quem tiver alguma dúvida deve olhar para o percurso de Nuno Melo, que vai lá passar pelo menos 15 anos apenas a mandar (muitas) bocas nas sessões parlamentares.
Concluindo: se duas pessoas com experiência no universo da opinião assinam as asneiras que cito, não deve surpreender que os anónimos das caixas de comentários sejam uns autênticos trogloditas.