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Eremita
Cansaço
De quem lava o suor suando uma vez mais
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Eremita
Cansaço
De quem lava o suor suando uma vez mais
Eremita
Não sei que lastro se acumula dia a dia
É como a erosão das noites nas manhãs
A poeira que à tarde se acrescenta ao chão
Veio hoje um desses dias, a prumo no fulcro
Chegam mais pontuais que as regras à mulher
A cada trinta paro e nada, nada faço
Não chega a ser conserto, é só uma afinação
Um modo de ajustar o sonhado ao possível
Bem a salvo do inverso que dá em loucura
Mas nada, nada, nada faço para que fique
O valor corrigido, este saldo aprovado
Ajuste que me anima logo pela manhã
Eremita
Não valia a pena prolongar uma zanga com o rapaz do cineclube. Cruzámo-nos na rua, murmurámos qualquer coisa ininteligível e demos um abraço. Depois entrámos no café e foi já sentados que ele prometeu que não voltaria a plagiar-me. Bastou-me, na medida em que consegui imaginar-me a perdoá-lo se me a plagiar outra vez. Ainda ouvi o poema que ele escreveu no momento sobre o nosso reencontro.
Amigos destes não podem partir à chuva
Abusar das promessas, esboçar encontros
Futuros na reserva em que nunca se toca
As palavras não saem, só o abraço assim
Um segundo mais curto e dois fora de tempo
Eremita
O poema que o rapaz recitou esta tarde é meu. A princípio, ele não deu o braço a torcer; mais tarde, chorou. Não foi difícil fazer prova e até usei o telefone celular, muito adequado para convencer os jovens. O cabrãozinho mudou o nome ao poema, saiu-lhe curto o rasgo criativo. Quando acabou de chorar, perguntei-lhe se alguma vez o foram esperar a uma estação ferroviária. Então ele disse-me que jamais tinha andado de comboio. Fiquei a pensar no empobrecimento de biografia que foi ir, em apenas três gerações, da experiência do Ultramar à da internet, passando pelo InterRail. Pobres miúdos. O título é dele, relembro, mas o poema é meu.
Na Gare de L´Est regressei ao útero
Não o das arcadas, dos espaços resguardados
E princípio de um fim ou não, carris são carris
Regressei ao útero, pontualmente
O que se espera da ferrovia gaulesa
Mas não de todas as mães.
Eremita
Desta vez foi ao almoço. O Judeu diz que a culpa é minha, diz que o incentivei. Discutimos depois se é legítimo reciclar a prosa de amor. O Judeu é a favor, porque, tal como o estado febril pode ter muitas causas, mas é bem descrito pelo aumento da temperatura do corpo, também o enamoramento é um estado que podemos descrever independentemente do amante. A tese não me pareceu má, mas o Judeu pareceu-me demasiado radical quando disse que o autor do poema não está obrigado a revelar ao seu novo amor que o poema foi escrito para outra pessoa. O rapaz seguiu a nossa conversa com um rosto de grande perplexidade. Creio que só amou uma vez na vida.
Porto onde se chega
A gritar mar à vista
Imagem partilhada
Com o escultor anónimo
A figura de proa
O mármore à chuva no jardim
As texturas inventadas
Há uma gota a escorrer
Mas é de carne
O rego por onde vai
E este corpo já não é meu
Se há uma cor que te diga
Eu digo azul
No reflexo de um corvo
Que depois das tangentes
Foge a sete asas
E semeia o Douro
Por caminhos inadiáveis
Voa sem os segredos
Que largou como lastro
Vai com confidências
Que aceita como um destino
Muito além da razão
Foi o meu corpo
Traiu-se sem traidor
Furta-se agora ao rio
Ganha o mar e o deserto
O horizonte em círculo
Esse truque fácil
De não sair do lugar
A patriótica vocação
O abandono existencialista
E a vida corre ao lado
Não se pára o curso de um rio
Com as palmas da mão
Não se troca de foz
Com as voltas na cama
Não cabe um oceano
Nas palavras de um conto
Há algo de trágico
Neste mergulho em apneia
Descubro-te em braçadas
Acima é à tona d’água
E ainda digo azul.
Eremita
Esta madrugada vimos Sol Enganador. Depois o rapaz partilhou alguns dos seus trabalhos sobre o Alentejo e disse-lhe que ele abusa das virtudes fonéticas de "ceifeira-debulhadora". Retive um outro poema, sobre o tempo. Tempo, mulheres e ceifeiras-debulhadoras, eis o universo poético do rapaz.
Um ponteiro das horas ao abandono
Sem roda dentada
Os minutos em ferrugem
Um peso que não se toca
Um segundo vai
E o segundo volta
Sabes,
Via sempre a mesma sombra
No corpo em movimento
Uma sombra parada
Que não se parecia com nada
O céu dava ares de fotografia
Uma imagem sem retoques
A eterna alvorada,
E vinha o padeiro
Depois o carteiro
Mas sobrava sempre a mesma sombra
No corpo em movimento
Era como se o tempo trespassasse
Sem deixar ferida
Um qualquer truque de ilusionismo
Sem verbo, nem nada
Eremita
O rapaz do cineclube ainda não tem idade para desistir de escrever poesia. Quando o filme não é de acção, improvisamos umas tertúlias que começam ainda com o genérico final a correr. Por vezes, acompanho-o à guitarra. Mas o mais frequente é o rapaz declamar a cappella e de cor. Da noite de ontem, só gostei deste poema. Nunca pensei que o puto escrevesse assim e fiz questão de partilhar a minha surpresa. Também pensei que ele ainda seria virgem, mas nada disse.
Emendamos os corpos nas sombras do quarto
Troco órgãos por sentidos e ouves ao ouvido
Síncrono o peito não nega só que não cede
Não te tenho na mão, decoro-te nos dedos
Mas o tremor que se converte em riso, o que é?
Perfeitos na metade de quem não se entrega
Será noite outra vez e aqui estarei de novo
No quarto nu está mal corrida a persiana
Bem, eu tinha a certeza de estar a escrever o que ...
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