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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

15
Fev14

Como lembrar um chinês


Eremita

Não somos bons a distinguir duas formigas operárias num formigueiro. Somos melhores a distinguir chimpanzés e ainda um pouco melhores a distinguir chineses, mas de dois chineses escolhidos ao acaso diremos provavelmente que são mais parecidos do que dois lisboetas também emparelhados às cegas, mesmo que escolhamos um bairro da capital pouco cosmopolita. O mesmo se passa com os nomes e apelidos chineses. Recordo Wang Fô (graças a Yourcenar) Mao e Deng Xiaoping (eternamente associados por um reflexo condicionado que me faz pensar num quando me lembro do outro), Lang Lang (pela eficácia didáctica da repetição), Confúcio (por soar romano) e os que poderia lembrar a seguir viriam com esforço. Parece então evidente que o anonimato e a ausência de um rosto são a melhor forma de assegurar a persistência de um chinês na memória de um ocidental. Alguém conhece as feições e o apelido do chinês que enfrentou os tanques na praça de Tianamen, em 1989? E não será este o chinês mais universal das últimas décadas? Talvez por isso, recordo mal a miscelânea de informação que vou editando, mas ainda me lembro do chinês que morreu em 2013 de infecção pulmonar em resultado dos imunossupressores que lhe administraram para evitar a rejeição de um transplante renal. A sua morte será referida em breve na imprensa especializada, mas os detalhes apenas serão encontrados na secção de Materiais e Métodos, que só é lida em caso de extrema necessidade, pois as publicações académicas privilegiam os resultados positivos. Embora tivesse sensivelmente a minha idade, creio que essa coincidência não é relevante - de resto, imagino-o fumando e eu nunca fumei. 

 

 

21
Jan14

Um desastre iminente


Eremita

Por um motivo que me escapa, comecei a receber manuscritos de áreas que não domino. Primeiro foi aquele ensaio sobre Schopenhauer, em que o autor, sem nunca largar o corrimão da revisão bibliográfica, conclui que não nos devemos preocupar com os argumentos lógicos contra a existência de livre arbítrio, porque o sentimos enquanto tal. Fiquei mais descansado. Corrigi depois um outro ensaio, pejado daquelas redundâncias que denunciam um conhecimento pouco amadurecido, em que a ameaça nuclear iraniana é vista como um receio infundado do Ocidente. Corrigi o último parágrafo com um afinco particular, tendo em conta as possíveis consequências geopolíticas. Recebi ainda o currículo de uma enfermeira norte-americana, tão competente nos cuidados continuados que, ao ler o documento, não se fica com vontade de a contratar mas de envelhecer para que ela cuide de nós. E, a terminar esta miscelânea que não antecipara, editei uma carta de motivação de um jovem alemão ambicioso, suficientemente falsa para não me deixar com a sensação de vergonha alheia tão comum nestas cartas, quando ingénuas. Estes documentos, com um cunho pessoal mais marcado do que os manuscritos de ciências naturais, reforçaram um hábito que venho desenvolvendo desde que comecei este trabalho, que passa por imaginar fisicamente os clientes e com eles estabelecer uma relação unilateral que pode ir ao ponto de desprezar uns e a admirar outros. Receio que, mais tarde ou mais cedo, esta emotividade comprometa o meu futuro como editor freelancer. Só me resta esperar que o responsável por este desastre iminente seja efectivamente uma besta.

04
Jan14

I love my job


Eremita

O Google regurgita 56 milhões de entradas para "I love my job". É um número impressionante, tendo em conta que "what the fuck" devolve menos de 17 milhões, mas tenho dúvidas. As pessoas mentem. Ontem recebi três textos para corrigir sobre temas muito distintos: a fauna da Tanzânia, o conceito de livre arbítrio em Schopenhauer e os hábitos de consumo de whisky dos cidadãos do Reino Unido. O impulso para ligar estes três assuntos numa narrativa surgiu com a mesma naturalidade com que uma criança responde ao desafio de ligar com um risco os algarismos que definirão uma silhueta, mas tal como um adulto percebe as silhuetas dessas actividades de crianças antes que os números estejam unidos pelo traço, também um cansaço parece preceder o exercício supostamente original de relacionar temas díspares. Do I love my job? Não sei. Mas agora posso dizer "I love my job" e dar o exemplo destes textos recebidos no mesmo dia sobre a Tanzânia, Schopenhauer e o consumo de whisky

02
Jan14

Cultura empresarial


Eremita

Das três, Eloquence for All é a que tem a cultura empresarial mais agressiva. Quando fiz login in pela primeira vez, descobri uma hierarquia de editores, um fórum de discussão entre freelancers e um manual para estudar. As referências ao manual são constantes, lembra uma das religiões do livro. Parece também haver camaradagem e ninguém escreve "Eloquence for All", todos usam o diminutivo "Eloq" - duvido que alguma vez seja capaz de escrever "Eloq", antecipo já a mesma inibição que me impediu de vestir a T-shirt "I love NY" apesar de ter lá vivido 6 anos e ter dado de beber aos operários que removeram o entulho do 11 de Setembro. Enfim, estas primeiras interacções deixaram-me com a impressão de que apenas toquei no verniz da simpatia profissional dos norte-americanos, que a qualquer instante a conversa pode azedar, não no grau das conversas mansinhas dos mafiosos que acabam abruptamente com um tiro nos miolos, mas com a mesma qualidade de volte-face. No primeiro capítulo de The Circle, a distopia de Dave Eggers, há diálogos entre a recém-contratada rapariga e os seus mentores numa empresa de redes sociais que me lembram as interacções que tenho tido na Eloquence for All. Talvez não seja má ideia terminar o livro. 

 

 

01
Jan14

$245


Eremita

Via Paypal, a Bollywords enviou-me $245 a 18 de Dezembro. Apesar de não ter entrado em contacto com ele desde que me refugiei em Ourique, a primeira coisa que fiz foi redireccionar para o meu pai o email com a confirmação da transferência. A resposta não demorou 5 minutos a chegar e imaginei-o a viver há anos sentado à secretária, agarrado ao computador, num permanente estado de vigília sustentado por cafés e snacks que a empregada lhe trazia, à espera de um sinal meu; creio que esta imagem pouco realista não teria existido se quando deixei Lisboa já houvesse muitos telefones inteligentes, mas tomá-la por meramente circunstancial seria uma negação forçada da ansiedade que denuncia - a minha ansiedade, bem entendido. Logo a seguir aos parabéns de circunstância, estava a verdadeira resposta: "como sabes, o dinheiro não é tudo na vida". Com frases cirúrgicas, o meu pai sempre foi capaz de nos salvar a ambos dos momentos embaraçosos que eu vou criando. Atingimos a maioridade quando estes papéis se invertem, o que pode nunca chegar a acontecer. 

 

PS. Creio que investi uma das passas do ritual da passagem do ano no aumento da minha produtividade literária, mas o desejo foi tão megalómano que evito partilhá-lo e apresento-o já na versão corrigida: retomar o Ouriquense, escrevendo um post por dia. 

15
Dez13

Artigos definidos


Eremita

Não quis retomar a escrita antes de ter uma fonte de sustento. Falhei como ghost writer (mas não deixo de divulgar o tarifário), falhei como autor de artigos de viagem sobre lugares que não chegou a conhecer, falhei como escritor de romances ligeiros comercialmente viáveis. Mas creio ter encontrado um lugar como editor de artigos científicos. Depois de contactar dezenas de empresas que vendem trabalho de edição a autores de manuscritos que não têm o inglês como língua nativa, comecei a trabalhar como freelancer para três. Para não perder liberdade neste relato, estas três empresas, uma norte-americana, uma inglesa e uma indiana, serão designadas por nomes fictícios, a saber: Eloquence for All, Oxford Comma Inc. e Bollywords, respectivamente. Há dois dias, recebi os meus primeiros honorários ($33) e fui comer uma picanha com o judeu. Soube-me bem, como se fosse carne de um animal por mim caçado.  Stay tunned tuned.

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