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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

31
Dez08

14


Eremita

   

RASTAFARI: O nosso anfitrião tem dreadlocks. As paredes do hotel estão pejadas de fotografias de negros famosos. Há trechos de história em que os negreiros portugueses são os maus da fita. O melhor é não revelar a minha nacionalidade. Mónica, que é espanhola com sangue peruano, tratará da logística. 

31
Dez08

13


Eremita

  

A NAMORADA DE KARL: Mónica informou-me que Karl tem queda para africanas e que seria ingénuo entender a sua ida para o Niger como um mero esforço de pendor humanitário.

31
Dez08

12


Eremita

 ACRA: por uma questão de economia, cito o alemão que ainda hoje fará a sua aparição no diário: "all the big cities in developing countries look the same. I hate them". Um bem-estar económico de séculos faz às cidades o que, segundo Tolstoy, a infelicidade faz às famílias: diversifica-as. Caso contrário, a norma é uma indiferenciada desordem. Ora, não é preciso cursar urbanismo para rebater esta afirmação tão peremptória, tal como nem só os terapeutas familiares suspeitarão do rigor da frase de Tolstoy, mas o nome do russo desencorajará alguns do reparo e assim se explica a associação - aqui nota-se que comecei a escrever este trecho depois de ler umas 10 páginas de Saramago (é embaraçosa a permeabilidade do meu estilo).

Acra amanheceu filtrada pelos cortinados do nosso quarto, que eram de um tecido aveludado muito pouco apropriado para o clima tropical, ao ponto de a sua simples contemplação induzir um ligeiro sufoco. O clima de Acra, pelo menos em Dezembro, é a atmosfera de Julho em Nova Iorque cruzada com o céu da Paris de Fevereiro - conto recorrer a esta técnica dos híbridos úteis (a fórmula anglófila x meets y) para imprimir fluidez às descrições, evitando adjectivos e fazendo fé no consciente colectivo. Valeu-nos durante a noite o ar condicionado e também uma gigantesca ventoinha, que desempenha o papel adicional de dificultar a aterragem dos mosquitos sobre a nossa pele, algo que não é um mero capricho pois o Gana é uma área endémica de malária.

Acra é uma cidade sem monumentos - nem centro histórico, nem estátua do libertador a livrar o país dos últimos colonizadores - e com um tráfego infernal. A vida decorre na berma das estradas e sobre o traço descontínuo, onde tudo se vende: um gigantesco quadro do Jesus Cristo de olho azul, traços finos, pele rosada e barba aparada, parecido com um que a minha avó madeirense tinha, mapas do Gana, tapetes para os carros, artesanato, snacks, água em pequenos sacos de plástico. Também há bíblias, mas são gratuitas - o país é de protestantes e não deve haver um Tolentino local que justifique edições esmeradas. 

31
Dez08

11


Eremita

 A SHITHOLE: há uns anos, o meu pai começou a usar a fórmula "já não tenho idade para..." "Já não tenho idade para tintos maus", por exemplo. Ainda estou a uns anos da ter a idade do meu pai quando começou a usar tais expressões, mas a minha geração compensa o atraso na procriação com o aburguesamento precoce. Sinceramente, já não tenho idade para espeluncas. Mónica ganha mais do que eu (vivo de rendimentos) e tem menos encargos (pago renda e ostupperwares estão cada vez mais caros), mas é daquelas pessoas que rejubilam com uma pechincha. Pelo menos os lençóis não têm manchas de esperma resistentes à lavagem.

 

31
Dez08

10


Eremita

 LAWRENCE: O nosso taxista é um homem de confiança. Lawrence trabalha na empresa de um primo de Mónica. Esta história da confiança vai ser uma constante. Nos países subdesenvolvidos somos todos pessimistas antropológicos, pelo menos segundo Mónica. 

 


31
Dez08

9


Eremita

 Mónica: deu-me a pior recepção em uma década de encontros esporádicos e muito antecipados. Podem ser efeitos secundários de 10 meses numa NGO na Libéria, efeitos de um estado de alerta permanente e uma preocupação com  logística que resulta muito pouco atraente. Que importância tem ter trazido a merda do computador? Só o fiz para o poder usar durante as escalas em Casablanca. Mónica escusava de ter reagido como se eu tivesse aparecido de surpresa com uma loira ao colo. 

 


30
Dez08

8


Eremita

 "PAEDOPHILES AND OTHER SEXUAL DEVIANTS": as autoridades locais parecem ter uma fé infinita no poder dissuasor das ameaças e o aeroporto está pejado de avisos. Pedófilos, cuidado... Traficantes de droga, a vossa hora chegará... Os subornos são punidos pela lei (esta tocou-me bem fundo). Não ter encontrado o aviso que escolho para título em Marrocos, país com largas tradições na oferta a pedófilos. enfim, mostra que o despudor público é exclusivo dos protestantes.

 


30
Dez08

7


Eremita

KARL: um alemão nos trópicos ou até em clima temperado é quase sempre descrito como um patife. Este estereótipo é tão forte que dir-se-ia estarmos perante um arquétipo junguiano. A equivalência entre o alemão expatriado e a sua condição de patife está em todo o lado: de Brideshead Revisited, de Waugh, com Kurt, o degenerado desertor que se torna companheiro de Sebastian em Marrocos, à telenovela Chuva na Areia, baseada num livro de Sttau Monteiro,  com Heins Neuber, o alemão que sua em bica e capa Caniço, passando inclusive pela realidade dos nazis foragidos para a América do Sul, com Josef Mengele e outros que seria fastidioso enumerar. Há evidentemente excepções, como o respeitado Rommel, a Raposa do Deserto, mas Karl, que pelas suas palavras  "travels light", não se consegue ver livre de um fardo pesado e nem o facto de trabalhar para uma ONG em África, que faria de qualquer outro uma espécie de santo laico, parece redimi-lo. Tanto é assim que Mónica avisou-me logo: "he comes across as someone rude, but..." 

 


 

30
Dez08

6


Eremita

HOMOFILIATalvez em tempos idos o que se segue passasse por dirty little secret da heterossexualidade masculina, mas a total abertura aos costumes que caracteriza a nossa época subiu a fasquia mínima da verdadeira da confissão pública para níveis incompatíveis com uma existência fora dos estabelecimentos prisionais. Em todo o caso, ainda não é costume os homens heterossexuais  falarem sobre o corpo de outros homens, mesmo quando partilham a contemplação, como quando durante uma final de 100 metros a câmara vai mostrando os adversários ainda nos blocos e podemos medir a envergadura de cada um e apreciar a harmonia da massa muscular. A verdade é que os homens conhecem melhor o corpo masculino do que as mulheres, pela simples circunstância de viverem enclausurados dentro de um. Esta imagem da clausura vem muito a propósito (isto está tudo combinado), porque quando um homem heterossexual olha para outro homem, o desejo que eventualmente possa sentir não passa por possuí-lo no plano sexual, mas antes por possuir o corpo dele. Bem sei que esta ideia de "homem heterossexual" para muitos não faz sentido e dir-me-ão que estou apenas a tentar sublimar um incipiente desejo homosseuxal, mas insisto, desta vez em mote: o desejo a que me refiro não é carnal, é de encarnação. E num certo sentido, este é mais forte do que aquele, porque ambos os desejos podem não passar de caprichos, mas o primeiro concretiza-se ainda num capricho e o segundo - ainda que uma fantasia - remete para um compromisso para a vida, ou pelo menos até ao encontro com um corpo ainda mais sedutor. Foi o que me aconteceu no Coconut Beach Resort, ao fim da tarde de hoje. Posso não ter encontrado a mulher da minha vida no Gana, mas encontrei o corpo.

 

Consta que cada povo tem uma noção de espaço privado característica. Para uns, ter alguém a menos de 50 cm é uma intromissão, para outros o incómodo só surge aos 30 cm e há ainda um tipo de gente, creio que transversal a todas as culturas, que colapsa esta distância agarrando o interlocutor que acaba de conhecer pelo braço. Alguma incompatibilidade deste tipo deve ter sucedido, porque o rapaz passou-me uma tangente, embora a tivesse sentido como uma secante. Vinha ainda molhado e de tronco nu. Apolíneo? Perto dele Apolo seria raquítico. 1,90 m, uma envergadura de albatroz, uma discreta musculatura que o fazia ligeiro quando visto de perfil e que era resultado de uma qualquer prática desportiva - basquetebol, vim a saber mais tarde - e não de trabalho de ginásio, ou seja, eram músculos com um propósito e a beleza destes apenas um derivado. Esmagador. Mas era sobretudo a juventude do corpo que marcava e o afastava do puro estereótipo dos negros perfeitos e dotados à Mapplethorpe, que se percebe serem criaturas que já foderam muito na vida. O rapaz devia ter uns 20 anos, talvez 21 ou 22, não mais nem menos, e talvez não tivesse ainda ido além do namoro ou de uma relação com a primeira e única namorada. Sim, estamos em África, mas há metodistas e baptistas por aqui. Como se não bastasse, era também bonito. Mónica estava comigo e não disse nada, parecendo nem sequer ter reparado, mas vim a saber depois que não foi o caso e seria ela a primeira a comentar comigo  o físico do rapaz. Isto porque ele acabaria por passar a noite de fim de ano à nossa mesa. Como conseguimos isto? É menos excitante do que se possa pensar e talvez seja altura de apresentar Karl.


 

30
Dez08

5


Eremita

ElMINA Uma pequena violação da regra da tabula rasa: espreitei as fotocópias do Lonely Planet do Gana que Mónica trouxe, embora apenas tivesse lido duas páginas e assegure desde já que não voltarei a repetir a falha até ao fim da viagem - no Sábado, a 3 de Janeiro, durante umas voltas de táxi, será Lawrence a dar-me umas noções de religião, política e história locais, mas regressarei a Ourique com a minha ignorância sobre esta gente e esta terra praticamente imaculada. Elmina é a povoação mais próxima do nosso hotel. Trata-se de um lugar de pescadores, que ainda tem uma fortaleza construída por portugueses - "ah, our first colonizers", dirá Lawrence no Sábado, depois de saber a minha nacionalidade. Disciplino-me para evitar a visita à fortaleza, um impulso que ficou de anos a viajar com a família e a entrar em tudo o que se assemelha a um monumento. Will Smith, virei a saber mais tarde, não seguiu esta regra e visitou-a mesmo. Há uma fotografia dele e da sua entourage - vieram aqui numa pausa das gravações de Ali - a escutar atentamente um guia, que certamente lhes falava do comércio negreiro. Em paralelo com o tráfico de escravos, Elmina, deve ter sido uma região de prospecção de ouro (el mina). Outros tempos.

O porto de Elmina teria merecido várias fotografias. Podia ser um cenário para corsários do século XVIII ou piratas contemporâneos dos mares da Somália. Parece intemporal e ao mesmo tempo familiar. A familiaridade virá talvez das cores das embarcações e de um pestilento cheiro a peixe podre ou peixe seco - a distinção é subtil - que me faz recuar umas décadas, até Sesimbra. A grande diferença é que o pescador ganês parece não passar os dias em terra a cuidar das redes, como o sesimbrense.

Elmina será ponto de passagem obrigatório todos os dias, na ida para a praia e no regresso, depois do jantar. De manhã e de noite, a vila nunca deixa de ter gente nas ruas e comércio, mas a noite urbana em África tem algo de fantasmagórico. Por causa da má iluminação e da tez negra, os transeuntes confundem-se com a paisagem. Não chega a assustar, antes pelo contrário. Aliás, esta anulação visual faz-me sentir em paz, exactamente como quando pela primeira vez me deparei com a minha cidade toda cheia de neve. A diferença é que no caso da cidade a explicação se deve ao silêncio imposto pelo estado intransitável das ruas, enquanto na noite de África as motoretas, a música e as conversas não deixam de ser fazer ouvir. Mas é a mesma paz. Como explicar isto? Não faço ideia. Deve ser coisa de eremita.

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