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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

13
Mar10

Limbo social


Eremita

Há pessoas que cumprimentamos sempre e pessoas que nunca cumprimentamos. Trivial. Mas há também pessoas que cumprimentamos ou não em função do contexto. Reconhecê-lo não é uma admissão de hipocrisia ou de cobardia. Evitar certas pessoas em certos contextos pode ser um acto de altruísmo (quando não se quer complicar a vida do outro) ou de modéstia (quando se pensa que o outro não se lembra de nós), ainda que sempre assente num infundado optimismo (por implicar pensar que ninguém nos viu). Estas são situações exclusivas das grandes metrópoles e impensáveis em Ourique. Não que falte por aqui a complexidade arquitectónica e vivencial para gerar tais contextos - raios, temos cafés e esquinas. O que distingue Ourique é a pequenez da sua teia social. Aqui ninguém se pode dar ao luxo de decidir um cumprimento em função do momento, sob pena de transmitir uma vibração que se propagaria por toda a parte e chegaria a todos, inclusive à aranha capaz de o devorar.

 

 

15
Set09

Catanadas no Ruanda


Eremita

 

A racionalização era o meu ajustamento preferido e também o mais detestado. Se praticado por mim, tranquilizava-me; se praticado por outros em relação a mim, desesperava-me. Com os anos, aprendi que nunca se deve partilhar a nossa racionalização com a pessoa que a motivou. Mas aprendi também que ser exposto à racionalização da pessoa que a pratica em relação a nós é o caminho mais rápido para a libertação. Quando se começa a usar esta técnica, vai-se pois do desespero à melancolia e tudo acontece com a tranquilidade das rotinas. O único risco é abusar do expediente. Foi o que me aconteceu.  Nos últimos tempos, a racionalização que ouvia do outro despertava em mim algo novo. Não voltara a ser desespero, nem era já melancolia, antes um sentimento mais conformado do que o primeiro e, na aparência, mais simples do que o segundo. Seria apenas a banal tristeza, se não houvesse uma consciência tão aguda de que era preciso recorrer a um qualquer outro ajustamento, o que me levava a pensar na sublimação, projecção, regressão, negação e sublimação como opções de um cardápio. Tal lucidez não apagava a tristeza, nem sequer lhe alterava a intensidade, mas mudava-lhe a natureza. Ao fazer radicar a tristeza na própria lucidez, a tristeza deixava de ter uma causa externa. Deve haver um nome para este ajustamento. Indexação egoísta? Usurpação defensiva? É algo que desumaniza e que não recomendo a ninguém. Enfim, tudo é relativo. Quando se fala em desumanidade, ainda nos devemos lembrar primeiro das catanadas no Ruanda.

05
Mar09

Fuga e contrafuga


Eremita

 

 

A série A fuga de um Lisboeta dá lugar a Contra Lisboa. Na Fuga contemporizava, ainda pensava ser possível salvar Lisboa e as suas gentes. No Contra limitar-me-ei a destruir Lisboa e os lisboetas. 

 

27
Out08

Peão na passadeira


Eremita

 Não havia rosto mais complexo na rotina de Lisboa do que o do peão que me fixava nos olhos quando parava o carro diante da passadeira. Uns pareciam agradecer-me, mas com a altivez de quem reconhecia estar a usufruir de um direito. Outros pareciam indignados, mas com a autocensura de quem sabia que eu cumpria o meu dever. E havia uns terceiros, que pareciam estar agradecidos e indignados ao mesmo tempo, sem que nem estes dois sentimentos nem as suas respectivas modulações intrínsecas se anulassem. Eram rostos que exprimiam quatro estados de espírito em simultâneo e levar com isto todas as manhãs era um confronto demasiado recorrente com a humanidade. 

15
Out08

Chador chic


Eremita

O chador - creio que também lhe chamam burka afegã - é aquela mortalha para vivos que oculta a totalidade do corpo, uma peça de roupa que é o cúmulo da ortodoxia. Ao invés, a burka sensu latu é uma peça de vestuário que cobre apenas a cabeça,  deixando uma tira destapada, por onde espreitam os olhos. Literalmente e por comparação ao chador, a burka revela alguma abertura. Mas para atingir o grau de ocultação do chador, a burka só precisa de um acessório de roupa, geralmente tido como um símbolo de sofisticação, conforto e autonomia: os óculos escuros. Dito assim, detestar óculos escuros é quase um imperativo ético. A estética é segundária; quem quer ficar bem de óculos escuros, em vez  de que procurar um modelo caro deve antes vazar um olho. Tudo o resto é fraqueza. 

 

Quando nos encontrámos pela primeira vez, lembro-me que lhe tirei os óculos escuros e logo ela se livrou da roupa. Da última vez, ela não tirou os óculos e eu evitei olhá-la. Para que não a descobrisse ainda nua e esta fraqueza não se esgotasse num derradeiro efeito de óptica, o jogo dos espelhos - as lentes dela e os meus olhos - a reduzir aquela nudez a coisa microscópica e a sua génese a uma incerteza, por causa da velocidade da luz. Se tivesse ficado em Lisboa, o mais provável teria sido ceder e comprar uns óculos escuros. Mas aqui na planície tenho um olhar duro, como o Clint Easwood dos Western Spaghetti. Não custa fitar os sobreiros e as rugas são bem-vindas. 

 

 

 

09
Out08

Fenómenos paranormais


Eremita

Sou por natureza e formação céptico em relação aos fenómenos paranormais. Dobrar colheres com a força da mente só pode ser um truque de ilusionista. Porém, nos últimos dias em Lisboa, quando ficava com dores de cabeça pela força de certos pensamentos, conseguia depois vergar esses pensamentos e deixar de ter dores. Esta capacidade seria invejável se não se desse o caso de precisar de muita elasticidade mental, que pela lei da conservação da energia é proporcional à energia potencial elástica do pensamento que se verga. Isto cria um problema, porque o pensamento acaba sempre por se soltar numa vergastada ainda mais violenta. 

09
Out08

Cerco


Eremita

 Aos poucos a cidade foi apertando o cerco e transformou a minha vida num encadeamento de escapadas de ilusionista, em que a sair de uma situação cumpria apenas o objectivo de entrar na situação seguinte. 

09
Out08

Fôlego social


Eremita

Houve uma altura em que perdi o fôlego social. Mais de uma hora de convívio começava a pesar-me. Chegava animado aos jantares. A perspectiva de conhecer uma nova pessoa entusiasmava-me. Envolvia-me na conversa. Chegava a experimentar todas as pulsões: o gozo de arrancar uma risada aos convivas, o pique de uma discussão acalorada, o equívoco gerado por um toque de pernas acidental. Mas quando vinha a sobremesa já só pensava em sair dali e ir para casa. Foi mais ao menos por essa altura que voltei a deixar de ser pontual. Antes chegava atrasado por causa de um excesso de vontade, que me levava a programar demasiadas coisas. Depois passei a fazê-lo pela percepção de um excesso de falta de vontade, ou seja, para que o pouco entusiasmo não me abandonasse antes do fim do serão. Os meus amigos não repararam. Nem no período em que fui pontual, nem na alteração das razões da minha impontualidade. Durante anos foram invariavelmente dizendo: " chegas semrpe atrasado!". Da minha parte, reconheço que só tentei respostas pontuais. 

23
Set08

Esmurrar um jovem


Eremita

 

Foi importante fugir de Lisboa quando me senti capaz de esmurrar um jovem.  Lisboa tem hordas de jovens. Ourique, não; trata-se de uma vila envelhecida, temos poucas crianças e até poucos jovens. A crise demográfica é para mim uma boa notícia, vai permitir-me aceder a outras partes do território.

 

A direita conservadora não gosta dos jovens porque os jovens são a matéria-prima da transformação social. Por isso e porque um jovem não se sabe sentar a uma mesa. Eu detesto os jovens exclusivamente pela arrogância da sua juventude. Um conservador precisa de uma sociedade inteira para detestar um jovem. Eu detestaria o jovem se ele morasse comigo numa ilha deserta. Esta repulsa é irreprimível quando o jovem com no mínimo menos  x anos do que eu chama "velho" a um amigo meu que me leva de avanço pelo menos mais x anos. Este posicionamento etário intermédio tem estranhos poderes, que atingem o cúmulo com a equidistância. Era muito estranho, mas muito verdadeiro. Mais uns dias em Lisboa e teria hoje cadastro.

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