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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

30
Jan17

O problema das utopias


Eremita

 

 

 

 

Bem sei que o título denuncia a minha idade. Nenhum jovem, a menos que seja um jovem tomado por alguma afectação, escreveria semelhante coisa. Só tenho pena de não me lembrar em que estado fiquei depois de ver The Mosquito Coast, há cerca de 30 anos, quando era adolescente. Do filme, lembrava-me o suficiente para ter estabelecido paralelos óbvios com o recente Captain Fantastic, que vimos ontem. Salta aos olhos que Captain Fanstastic é o The Mosquito Coast da nova geração. Em ambos, um homem invulgarmente inteligente, científico e carismático, crítico do consumismo e das religiões organizadas, tenta romper com a sociedade norte-americana e procura reencontrar-se com a natureza, arrastando com ele toda a família. Em ambos, este homem falha e causa grande infortúnio aos seus. Enfim, os paralelos são de tal forma ululantes que dei por mim a perguntar se uma das crianças de Captain Fantastic não teria sido escolhida por ter o nariz arrebitado como o de River Phoenix, actor que representa uma das crianças de The Mosquito Coast. Naturalmente, há diferenças. Se Harrison Ford, o actor em The Mosquito Coast, é um patriota desiludido com a vulnerabilidade da economia americana ao Japão (eram outros tempos), cuja quimera é dar a conhecer o gelo a uma tribo recôndita, Viggo Mortensen, o captain, é uma espécie de hippie anarco-sindicalista que venera Noam Chomsky e sonha em fazer dos filhos reis filósofos, submetendo-os por isso a um rigoroso treino intelectual e físico, que inclui exercícios como a escalada desportiva de dificuldade elevada, a aprendizagem de seis línguas, entre as quais o Esperanto, um ritual de passagem que consiste em matar à faca uma presa de grande porte e comer-lhe o coração palpitante, e ainda, para cúmulo, a leitura de Os Irmãos Karámasov. O primeiro é mais grandiloquente, trágico e complexo do que o seu algo sucessor, mas os filmes coincidem na mensagem, que é irremediavelmente conservadora: o problema das utopias não é a sua impossibilidade, nem sequer a sua realização aquém do idealizado (a eterna desculpa dos comunistas), mas o seu lado intrinsecamente distópico, nos dois filmes revelado pela teimosia, autoritarismo, irresponsabilidade e até loucura (no caso de Ford) dos pais. Não chega a ser uma revelação, pois basta lembrar que ninguém teria vontade de viver na ilha imaginada por Thomas More. Dito isto, hoje sinto-me mais obrigado a ensinar guitarra às gémeas do que há dois dias. 

 

 

 

22
Nov12

Coming of(f) age


Eremita

Em The Firm (1993), não era tarefa fácil tornar verosímil a infidelidade de uma noite do jovem advogado representado por Tom Cruise: 1) apesar de advogado, naquela altura do filme Cruise ainda não vira os seus ideais serem postos à prova e tinha a consciência imaculada; 2) Cruise casara-se recentemente com a personagem interpretada por uma actriz atraente, ainda que de nome presciente, Jeanne Tripplehorn; 3) por algum capricho de Grisham (o autor do livro) ou de Pollack (o realizador), Cruise está sóbrio no momento do adultério. A única solução possível, excluindo a coacção, que iria dificultar a trama, passava por contratar uma mulher tão sensual que qualquer casal de espectadores iria experimentar um breve e tácito silêncio logo quando começasse a passar o genérico final. A actriz escolhida foi Karina Lombard e, em 1993, uma tentativa de sedução sua fracassada levantaria sérias dúvidas sobre a acuidade visual ou a orientação sexual do seu alvo, muito antes de concluirmos algo sobre o seu carácter. Como provavelmente sucede com outras pessoas, mesmo aquelas que ainda não estão a procurar "Karina Lombard circa 1993" no Youtube, depois de ver o filme fui à procura daquela cena marcante. Mas como talvez também suceda com outras pessoas, se houve uma altura em que o Youtube me fascinava por funcionar como uma memória colectiva infalível, hoje gosto mais das pesquisas frustradas, prazer que os mais novos nunca terão.

 

 

17
Out12

22 segundos


Eremita

The French Lieutenant's Woman (1981) contém uma das cenas de sexo mais rápidas da história do cinema, que ainda não vi documentada. Foi o que fiz. São 41 segundos, se considerarmos o momento em que ela o recebe entre os braços; porém, a acreditar que um primeiro gemido mais alto identifica o momento em que ela o recebe entre as pernas, são 22 segundos. Este pequeno exercício não faz justiça à trama de pulsões em desacerto que o filme constrói, nem capta a solução narrativa para contar uma mesma história com dois finais, o que, embora hoje pareça algo datado e lembre uma versão sofisticada e autocrática do Você Decide, em tempos apresentado por António Sala, tem um virtuosismo a que não sou indiferente.  

 

03
Ago11

Um sono oportuno


Eremita


 

O traço comum a todas as críticas de The Pale King, o romance póstumo e inacabado de Foster Wallace, é que nele se tenta tornar interessante um assunto imensamente chato. Inifinite Jest tem uma matéria-prima suculenta (drogas, dependência, competição e terroristas canadianos) e The Pale King parece ter o seu contrário (funcionários públicos de uma repartição de finanças), sendo esta busca do desafio derradeiro a prova definitiva do génio de Wallace. Isto parece-me demasiado esquemático, mas também é verdade que as críticas a Wallace e a própria forma de Wallace pensar sobre a sua obra e a sua pessoa me parecem básicas nas suas contradições e conclusões apresentadas. E já que é assim, permitam-me, aqui de Ourique, ser ainda mais esquemático e identificar a verdadeira imagem espelhada de The Pale King, que não pode ser Infinite Jest, visto que ambos tendem para o interessante. Quem consegue tal ousadia é Steven Soderbergh, em The Girlfriend Experience, a história de uma prostituta que, em filme, dá imenso sono. Nunca saberemos se foi intencional, embora a ideia de usar uma ex-actriz de filmes pornográficos no papel principal talvez seja a solução (favorável a Soderbergh) para este enigma. Em todo o caso, ainda bem que o Judeu adormeceu mesmo antes do fim, pois na última cena vemos um dos seus a ejacular apenas por dar um abraço à prostituta, percebendo-se que se trata de uma rotina entre os dois. Ora, qualquer pessoa sabe que os judeus ortodoxos são pessoas que reagem mal ao toque das gentias, mas há limites. Aquela cena não eleva em nada o povo eleito e seria capaz de pôr em campo o sionista que vive dentro do meu amigo.

30
Mai11

The Tree of Life


Eremita

 

A World Wide Web é tão wide e Portugal tão pequeno, que sobre qualquer assunto da actualidade que mereça uma atenção global é muito fácil encontrar online uma opinião que podia ser a nossa. Curiosamente, enquanto louvamos sem reticências o acesso à informação que a web possibilita, tendemos a esquecer o acesso à opinião, que parece ser o dirty little secret do intelectual. Um filão inesgotável de opinião prefabricada tem todas as características de uma tentação - dá-nos uma uma ilusão de saber, mas reproduz o efeito pernicioso da máquina de calcular: a certa altura, deixamos de saber pensar, como as crianças deixaram de saber fazer contas.

 

Há três formas de lidar com esta tentação. A mais radical, difícil e algo estúpida consiste em evitar qualquer leitura antes de termos uma opinião completamente formada sobre um determinado assunto. A mais preguiçosa consiste em devorar todas as opiniões e formar a nossa como se se respondesse a um teste de escolha múltipla. A posição mais sensata, creio, consiste em produzir  de modo autónomo - literalmente unplugged - uma ideia em embrião e usar depois a web para acelerar o seu processo de amadurecimento, identificando a forma para que o nosso esboço de ideia provavelmente iria evoluir. O que penso do último Malick está essencialmente aqui e só acrescentarei alguns pontos que são estritamente idiossincráticos, mas vai demorar uns meses.

 

Continua

30
Dez10

A melhor frase de 2010


Eremita

Spoiler Warning

 

 

 

Há já algum distanciamento histórico para afirmar que, depois a reforma política de Donald Rumsfeld, as melhores frases do ano voltaram à ficção. A de 2010, sem qualquer sombra de dúvida, encontra-se em Due Date. O filme tresanda a Big Lebowski, já quase um odor da infância afectiva, e há até uma cena de lançamento de cinzas. Neste filme, o vento sopra de feição e as cinzas não são de um amigo, mas do pai daquele que as vai lançar. Antes assim, emboa tivesse temido o pior, pois a famosa cena do Lebowski é um combinado de ternura e humor hilariante formalmente impossível de superar. Para alegria de todos, a cena homóloga de Due Date não envergonha, devido à extraordinária frase de abertura:

 

Dad, you've been just like a father to me

 

PS I: Gaspar, o rapaz do Cineclube, detestou o filme e a frase. Não sei até que ponto o definido maxilar de Robert Downey Junior terá influenciado a sua opinião, mas a verdade é que começo a acumular sinais de uma pulsão homoerótica reprimida neste rapaz. Quanto a não ter gostado da frase, lamento ter de ir buscar a sua infância, mas é bem possível que  Gaspar seja habitado por problemas com os progenitores mal resolvidos.

 

PS II: este filme deu-me uma ideia para mais um ensaio, a incluir no primeiro tomo da obra académica do Ouriquense.

 


20
Dez10

Não leve a criança que há em si


Eremita

 

Before the Devil Knows You're Dead deu-nos as personagens mais desesperadas da história do cinema recente. Em Stone, de Niro dá-nos a personagem mais triste. Peço deculpa pelo tom telegráfico e a armar ao crítico de cinema, mas preciso de terminar o Quijote antes de quarta.

 

14
Dez10

Die Büchse der Pandora


Eremita

Onde se conta o primeiro breakdown de Gaspar*, mais conhecido como "o rapaz do cineclube"


 

 

 

Gaspar pirateou a Cinemateca e regressou com mixed feelings. Tecnicamente, foi um gesto notável e cuja descrição aqui censuro, pois sou um cidadão retirado do mundo, mas ainda assim responsável; digamos, para atalhar, que o feito está para o mundo das cópias piratas como roubar o Federal Reserve Bank para o mundo dos assaltos. Mas não  é a Lusomundo, nem é o Paulo Branco, os alvos habituais. Gaspar sabe que deu uma dentada no erário, por muito barato que seja o preço do bilhete na Cinemateca. Talvez essa culpa o tivesse predisposto para o sentimento que verbalizou no fim da sessão, quando já só os dois nos encontrávamos na sala e eu o ajudava a guardar o projector:

 

- Estes velhos em filmes velhos são uns mortais particulares, não achas? Um morto que não se mexa e só apareça em quadros ou fotografias é um assunto arrumado. Um vivo é um processo em curso. Mas se aparece um actor de um filme antigo e, ao resolvermos a equação que integra a sua idade aparente e o ano de filmagem, concluirmos  que só pode estar matematicamente morto, passa a ser um fantasma durante  todo o filme. Pode até estar a fumar um charuto a uma mesa rica, ser gordo e representar um banqueiro,  ou uma sex symbol de época, dengosa e de perna longa, que na minha cabeça aparecerá como se  estivesse a profanar as sua campa. Não interessa que ele seja irrepreensível ou, como se diz em Lisboa, que vá muito bem. Para mim é sempre um fantasma, às vezes cheio de vermes. Acreditas que não voltarei a ver o Spartakus se o Kirk Douglas não optar pela cremação? Isto explica a razão de não vermos clássicos em Ourique. Não é desinteresse pela grande cultura cinéfila, percebes? Eu leio os Cahiers. É só porque fico triste, triste, triste - estas palavras foram repetidas sem que mudasse a entoação, e depois foi brusco. Tu acreditas em fantasmas?

 

Preferi nada dizer sobre Ricardo Chibanga.

 

* Gaspar passa a ser a designação mais habitual do rapaz do cineclube e é até provável que tenha alguns efeitos retroactivos.

02
Out10

Dois notáveis corpos


Eremita

 

Alle Anderen (2009)
Refiro-me menos à notável secura de carnes de Lars Eidinger e ao improvável rabo arrebitado de preta de Birgit Minichmayr e mais ao modo como Maren Ade os filma. As primeiras cenas são a melhor representação do enamoramento que vi no cinema, pelo menos desde a cena da sauna em Soleil Trompeur, de Nikita Mikhalkov. Depois o filme é um autêntico disparate, como também costuma acontecer às relações. São mesmo as cenas iniciais que o salvam.

Que seja um filme alemão a lembrar-me o que é o amor não seria tão bom como descobrir um brilhante cómico de stand up algures em Hamburgo, perdido num alinhamento de cabaret, mas chega para estilhaçar outro estereótipo. O amor no cinema europeu costumava acontecer na Europa do sul (Igreja e ilhas gregas), em Paris (mulheres a fumar), no Reino Unido (na versão amor de época, com um belo guarda-roupa,  e na versão do amor realista, com gente a carecer de um dentista) e na Escandinávia (quando Bergman filmava). Na Alemanha, na Áustria e em praticamente toda a Europa de Leste o tratamento do amor tende a ficar refém de grandes acontecimentos históricos, dos empalhamentos de Vlad Dracula ao nazismo e ao comunismo - bem sei que qualquer leitor se lembrará de vários exemplos que destroem esta tese, mas estou apenas a partilhar uma impressão pessoal. Acresce que a contribuição da Alemanha para o universo de referências erótico-passionais registava uma descida constante desde o fim dos anos noventa, por causa da subtil metamorfose que pôs  no rosto de Claudia Schiffer o eterno sorriso de um coelhinho e do desaparecimento daquele belíssimo enquadramento televisivo que era a posição de recepção de serviço de Steffi Graf filmada de costas, sobretudo quando em Roland Garros, talvez por o ligeiro ocre da terra batida ligar tão bem com o branco da roupa e realçar ainda mais aquelas pernas sublimes. Podia ainda referir incidentes menores, como as recorrentes gravidezes de Heidi Klum e, curiosamente, a substituição de Helmut Kohl por Angela Merkel (o chanceler Schröder é uma figura absolutamente irrelevante, neste contexto), que também contribuíram para o decaimento do erotismo da mulher alemã no contexto internacional. Vivemos pois uma época longe das glórias passadas que foram Marlene Dietrich, a adaptação cinematográfica de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e os anos dourados da pornografia centro-europeia antes da queda do muro de Berlim (isto li eu numa colectânea de ensaios), não sendo até descabido afirmar que o principal ícone feminino alemão contemporâneo é Bill Kaulitz, aquele moço do grupo Tokio Hotel.

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