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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

01
Mai19

A cadeira eléctrica


Eremita

Screen Shot 2019-05-01 at 16.29.53.png

Fonte

[Publicado a 6.6.2013; republicado a 1.5.2019]

Ninguém se opôs à compra da cadeira eléctrica, embora só o vizinho do 1º esquerdo contasse utilizá-la no imediato, por causa do cancro galopante. "Tivemos uma vida boa" foi o que a sua mulher me passou a dizer quando nos cruzávamos nas escadas. Outros vizinhos do bairro optaram pela mesma solução, mesmo aqueles que ninguém diria que tinham tido uma vida boa. Pedimos dois orçamentos e a diferença de preços foi tal que não houve hesitações. Uma cadeira eléctrica era solução que jamais me havia passado pela cabeça, mas eu vivia entre septuagenários e octogenários que me tratavam como "o menino" do prédio, apesar dos meus quarenta anos. Ainda assim, a solidariedade entre condóminos surpreendeu-me, porque cada um teve de pagar 2000 € e o prédio era de gente modesta. Talvez não valha mesmo a pena viver sem um mínimo de qualidade; o vizinho do 1º esquerdo seria o primeiro a subir à cadeira e os outros iriam a seguir, era só uma questão de tempo. É claro que me lembrei de outras alternativas e que ainda hoje penso se não teria sido melhor optarmos por uma solução mais convencional, mas evito sempre ir às reuniões e limito-me a assinar o livro de actas sem ler o que foi escrito, reparo apenas na beleza da caligrafia e ponho-me a imaginar a qual das vizinhas pertencerá aquela letra tão bem desenhada. Enfim, a cadeira eléctrica não incomodaria ninguém, desde que cada um a ela subisse de livre vontade. E quem sou eu para os criticar? Não imagino a cabeça de um octogenário. É possível que não queira desperdiçar tempo e a cadeira resolveria esse problema.

 

No dia em que a instalaram, fiquei mais descansado. A cadeira vinha com um sistema de segurança bem pensado, que tornava quase impossível a morte acidental: quem quisesse utilizá-la teria de rodar uma chave e carregar depois numa tecla, já sentado. Era ainda preciso manter a tecla pressionada para que a cadeira continuasse a trabalhar, o que servia para dissuadir quem, por capricho e impulso, quisesse brincar aos octogenários cansados. Era uma cadeira para gente com força de vontade. Mas quando os homens que a instalaram fizeram uma sessão de demonstração, muito profissional e sem uma única piada mórbida, ninguém se quis sentar na presença dos outros. Então ocorreu-me que aquele investimento teria sido um desperdício, pois as pessoas iriam continuar a viver conformadas e a cadeira ali ficaria, a um canto, com as luzinhas acesas em vão. Na noite em que  a vizinha do 1º esquerdo apareceu para me dar o número da sua conta bancária, abri-lhe a porta com vontade de desabafar sobre o destino da cadeira. Mas então reparei que, pela primeira vez, a cadeira estava no meu patamar e que a vizinha se apressou a sentar-se de novo, com entusiasmo de criança. Ainda se riu quando lhe desejei boa viagem, estava a cadeira a iniciar a descida do primeiro lance de escadas. É uma boa cadeira, muito silenciosa nos planos inclinados e graciosa nas curvas. 

14
Abr12

A trompete


Eremita

Não se sabe ao certo como se disseminou o vício de tocar trompete em todo lado. Ninguém aguentava mais de cinco minutos sem aproximar o bocal dos lábios. Conversava-se, mas entre fraseados melódicos. Às vezes era só um trilo, mas que bem que aquilo parecia fazer. Jazz, Telemann adorado como uma estrela de rock, melodias lânguidas entre os lençóis, depois do amor. As festas eram cacofónicas e nas ruas já nem se buzinava. O cidadão comum tinha pelo menos três trompetes. Gente abastada, três trompetes em cada assoalhada. A iconografia subjugava-se ao instrumento, da publicidade às galerias. Qualquer escritor aspirante fotografava-se abraçado ao seu trompete, com a bochecha encostada à trompete, jogando a trompete ao ar. Fizeram-se fortunas. Os grandes empresários da trompete concordaram em produzir instrumentos tão medíocres quanto tecnicamente possível. Não havia trompete que durasse mais de três dias, com o uso frenético que lhe era dado. Alimentar tal vício tornou-se então um problema para os agregados familiares mais necessitados. Houve penhoras. Nas lixeiras, mas depois nos parques e por todo o lado, acumularam-se trompetes enferrujados. Qualquer criança aprendia a tocar como Arturo Sandoval antes ainda de saber a tabuada.
Passaram-se décadas. Um dia provou-se que o trompete matava. Era do verdete. A conclusão demorou a chegar porque toda a gente tocava e morria sincronamente. Perante esta revelação, alguns conseguiram cortar com o vício. Era um grupo minoritário, olhado com algum desdém pelos trompetistas, que os viam como traidores, gente patologicamente sadia.
Passaram-se anos. Trompetistas e não-trompetistas conviviam sem grandes atritos, apesar de tudo. Mas um dia provou-se que o barulho do trompete ensurdecia. E que arreliava ao ponto de chegar a matar. Deixou de haver paz. Alguém ainda conseguiu enriquecer com a venda de surdinas, mas era uma solução precária. Como conciliar o direito à trombetada com o direito ao silêncio absoluto?
O trompetista começou a sentir-se perseguido. Com aqueles dedos sempre à procura dos pistões, os lábios deformados, as bochechas caídas, era a imagem do homem fraco, vergado pelo vício. Ou pelo menos era assim que pensava que os outros o viam. Coisas complicadas. A verdade é que investiu tempo e energia em alguma produção panfletária curiosa, onde reclamava o seu direito à trompete.
Tudo isto se passou há muito tempo. Não há hoje trompetes enferrujados nas ruas. As crianças continuam sem saber a tabuada, mas por outros motivos. Toca-se trompete em casa, às vezes com amigos, uns que tocam também, outros que apenas escutam. A cidade recuperou o silêncio. Há agora um outro vício, em plena expansão: pintar. Anda tudo a pintar ou desenhar, mesmo quando falam uns com os outros. Ninguém dispensa a sua latinha de spray, para cumprir o graffiti diário. É coisa para durar, com tanta parede virgem e o hábito deselegante de pintar por cima. Vão também passar muitos anos até que alguém prove que o spray é tóxico. E mais anos ainda, até se perceber que a agressão pictórica em níveis saturantes pode levar à loucura. Ascensão e queda. 

12
Abr12

O canhão de confetes


Eremita

Um homem de 50 anos, que não conseguiu comprar uma arma de fogo nem encontrar quem lhe emprestasse uma caçadeira, resolveu alugar um canhão de confetes, "perfeito para espaços de pequena e média dimensão, tais como, teatros, bares, discotecas e auditórios". O canhão funcionava a dióxido de carbono e disparava até 30 metros de distância. O homem armou-o, encaixou a ponta de uma fina vara ao gatilho e colocou-se a um metro da boca do canhão, segurando na outra ponta da vara, que não saiu do lugar. Empurrou depois a vara com um gesto seco de tacada de bilhar e o disparo desequilibrou-o, sem o derrubar. Mal recuperou a postura, levou a mão ao peitoral esquerdo, que latejava. Nesse dia, o canhão seria ainda a grande atracção na festa de Carnaval para as crianças do prédio. O homem passou a tarde a disparar confetes coloridos e impôs um perímetro de segurança de 2 metros de distância da boca do canhão. Não comprou confetes encarnados e consta que nunca mais lhe ocorreu recorrer a armas de ar comprimido ou outras.

12
Abr12

O Triângulo


Eremita

A importância que se dá à invenção da roda sempre me pareceu exagerada. A contrapor, à invenção da mesa redonda ainda não foi feita justiça. Não espanta pois que no hotel se tivesse optado por um design rico em ângulos obtusos. Numa das mesinhas triangulares sentou-se o primeiro cliente da manhã. O fulano vinha com uma indumentária estival mas trazia a tiracolo uma sacola de material sintético, que parecia rebentar pelas costuras com a papelada. Tinha um perfil semita, óculos de aros finos, uma magreza atlética e alguma tensão acumulada nas extremidades do corpo. Pediu um café. Aos poucos o local foi-se enchendo com gente de perfis variados, óculos e compleição física diversos, mas todos, sem excepção, traziam a tiracolo a mesma sacola de material sintético, nuns mais vazia, noutros já rebentada. Entre eles, tratavam-se cordialmente. Alguns conheciam-se e houve inclusive algumas trocas de posição entre mesas. A forma das mesas terá talvez criado um problema de geometria que reprimiu em alguns a tentação de as juntar mas a explicação, na verdade, é mais prosaica: o pé das mesas estava aparafusado ao chão. No máximo, formavam-se grupos de três. O primeiro cliente (chamemos-lhe A, para efeitos que em breve se tornarão evidentes), encontrara um colega (B) e tinham começado a conversar à mesma mesa. Era uma conversa desequilibrada, em que A falava e B sobretudo ouvia, pontuando aqui e ali o discurso do outro com interjeições e grunhidos mansos. Em breve deixou de haver assunto e os silêncios longos começaram a tomar conta da mesa; a colherzinha a bater na xícara teve então o seu momento. Mas quando tudo parecia pedir o remate de uma despedida atabalhoada, surge C, que vendo A de frente e B de costas se aproxima cheio de entusiasmo. O entusiasmo desapareceu no instante em que, aberto o ângulo, percebe quem B é. Como era demasiado tarde para voltar atrás, C senta-se à mesa com os outros dois. Cumpridas as palavras de circunstância, a conversa começou a desenvolver-se com um ritmo e uma dinâmica peculiares. A, B e C conhecem-se, mas A prefere falar com e ouvir B, enquanto B prefere falar com C, o qual -percebeu-se desde o primeiro instante- não está interessado em ouvir B e só se dirige a A, que parece só não o desprezar por ser uma pessoa educada. O discurso começou então  a fluir num só sentido e sem atalhos, de A para B, depois para C, chegando de novo a A. Como nenhum dos que ouvem estava interessado em ouvir,  conversa mudava constantemente, mantendo-se apenas o tom, cordato. Os três homens aguentaram a rotina durante cerca de meia hora, até que, de repente, todos se sentiram incomodados, a tal ponto que só lhes apeteceu abandonar a mesa. Foi o que fizeram, prontamente, como se à boleia de um daqueles círculos de progressão excêntrica que perturbam os planos de água. Na vastidão do café, o ângulo de 120 graus das trajectórias de cada um, enquanto se afastavam, fora a efémera prova matematica da repulsa que todos sentiram. De onde estava, pareceu-me óbvio que houve naquela mesa um momento de omnisciência síncrone que muito os abalou. Arrisco-me a dizer que A percebeu que B, o seu psiquiatra, fazia terapia com C, paciente de A, e que os outros dois tiveram a mesma percepção, no mesmo exacto momento. Do que falavam eles, seria matéria para tratar com enormes reservas. Por sorte não os ouvia muito bem da mesa onde estava, ou então teria agora que me debater com um problema bicudo de -arrisco-me a dizê-lo- sigilo profissional. Uma coisa é certa: aqueles três homens, vestidos com camisas de padrões exóticos e cores berrantes, com sandálias e folgadas bermudas de cáqui , não iriam gozar o resto da manhã livre do congresso internacional de psiquiatria.

07
Abr12

O portal


Eremita

Alguém dotado para a informática lembrou-se de digitalizar o planeta Terra, criando um portal interactivo para o efeito. Qualquer um podia consultá-lo gratuitamente e introduzir as fotos das suas férias ou no jardim com os noivos, anotadas ou não. O programa integrava as fotos anotadas num mapa mundi e arquivava as outras no mapa terra incognita. Periodicamente, com base na localização dos computadores de onde as fotos não anotadas tinham sido enviadas e em conhecimentos avulsos, os criadores do portal comparavam as fotos mapeadas com as fotos da terra incognita e, de cada vez, algumas destas fotos transitavam para o mapa mundi, de modo que a área fotografada nesse mapa foi sempre aumentando, embora a terra incognita não deixasse de crescer também. O projecto excedeu todas as expectativas - na gíria do meio, tornou-se viral. Criou-se então uma ferramenta de revisão da classificação de acordo com o policiamento do público, isto é, o portal passou a ser uma espécie de wikipedia em imagens. O sucesso do portal despertou a cobiça das grandes empresas, mas os seus donos conseguiram negociar com todas e centralizar as novas possibilidades, como o mapeamento ligado ao Google Maps e às grandes redes sociais. Quando a cobertura da área de terra do planeta atingiu uns estimados 2%, foi lançado o desafio de fotografar a terra inteira da Terra. O objectivo deixara de ser uma base de dados com fotos de todas as áreas de terra a descoberto, para passar a ser o de uma metafotografia que integrasse todo o planeta, como se fotografado da Lua, mas de grande resolução e sem as limitações das fotografias de topo que os satélites tiram - "como vista da lua, mas fotografada na rua" era o slogan. Cada fotografia de paisagem, que necessitava de uma resolução e escala mínimas, começou a ser processada por um sofisticado software ainda em fase experimental que conseguia combinar imagens do mesmo objecto tiradas de perspectivas diferentes. O sofware revelou-se poderosíssimo. E foi assim que o grande puzzle da Terra cresceu, não à custa da identificação do ajuste perfeito entre peças recortadas, mas pelo labor de um algoritmo que integrava todos os elementos associados à fotografia e era capaz de descobrir áreas de sobreposição mesmo entre fotografias tiradas de perspecivas diferentes. Em menos de um ano, arquivou-se 95% da área coberta de terra do planeta. Passou a ser possível uma viagem virtual entre Lisboa e Pequim, com todas as encruzilhadas que o verdadeiro viajante encontraria pelo caminho. Mas o turismo não acabou, apenas se transfigurou. Zonas inóspitas e sem beleza natural tornaram-se destinos cobiçados; fotografar o último metro quadrado de planeta foi anunciado como a derradeira e a mais democrática exploração. O upload dessa última foto foi notícia em todo o mundo. No dia seguinte, alguém escreveu numa coluna de jornal de fraca circulação uma frase apenas entendida pelos mais velhos: "Só o azul do mar nos salvará".

15
Out10

A impressora


Eremita

Para falar com o homens, os deuses nunca olharam a meios. Houve até um, todo poderoso, que fez com que matassem o seu filho na Terra para que pudessem apreciar a dimensão do seu perdão. Se é tamanha é a vontade dos deuses, não espantará o extenso bestiário dos seus mensageiros - o sacerdote, o monge, o vidente, o oráculo, o feiticeiro, o pai-de-santo, o xamã, o padre - e também o  engenho que  revelam na transmissão das suas mensagens - estátuas que choram, entranhas de galinha, fenómenos atmosféricos, coincidências improváveis. Era pois previsível que, mais tarde ou mais cedo, os deuses - ou Deus, mas não nos percamos em debates estéreis - adoptassem as novas tecnologias. Assim foi.  Os parabéns foram inteirinhos  para a Hewlett Packard, que viu a sua HP Color LaserJet CP4005 ser preferida a todos os produtos da concorrência. A CP4005, uma das impressoras de eleição das empresas, imprime 30 páginas a preto e branco por minuto e 25 páginas a cores por minuto, com uma resolução de 600 x 600 dpi, características em tudo adequadas à urgência e prestígio que as mensagens divinas merecem, mesmo as de pendor aforístico.

 

 

Acabo amanhã, hoje tenho muita lenha para rachar.

12
Jan10

O aprendiz do carrasco


Eremita

Na orla da floresta, onde antes havia uma nogueira desirmanada, um homem e um rapaz de trajes acastanhados e modestos estão diante de um cepo enraizado, com uma superfície lisa de quase um metro de diâmetro e a meio metro de altura, escurecida pelo sol e a chuva, mas ainda com os anéis concêntricos bem definidos, aqui e ali feridos por lenhos pouco profundos. O carrasco segura um imponente machado numa mão e uma melancia na outra, amparada pela sua barriga. Atrás deles há uma pilha de melancias e a paisagem é verdejante até se perder de vista. 
O homem equilibra a melancia pelo equador no cepo e ergue o machado com as duas mãos. A lâmina só não brilha porque o dia está enublado, mas percebe-se que brilharia à mais pequena aberta. O carrasco aponta dois dedos em forquilha na direcção dos seus olhos e diz algo inaudível ao rapaz, antes de erguer o machado. Desfere depois um primeiro golpe, um segundo e um terceiro, sem dar mostras de querer parar, aumentando inclusive a cadência. Ao fim de um minuto, sobre o cepo está uma melancia branca, sem uma única sobra de casca verde e sem que se note - pelo menos a esta distância - o vermelho vivo do interior. Em redor do cepo e sobre a sua superfície há inúmeras lascas de casca, finas como se alguém tivesse cortado uma pêra abacate com uma navalha. E nem a base da melancia escapou da lâmina, embora esteja ainda no mesmo lugar, não se percebendo daqui se o homem desferiu um golpe horizontal pela base tão rápido que deixou a melancia imóvel ou se a cada golpe a foi imperceptivelmente rodando sobre o seu ponto de apoio. O carrasco diz então ao rapaz: "quando fores capaz de fazer isto de olhos fechados, também terás direito a uma venda". 

12
Jan10

A Roleta Russa


Eremita

Quatro homens jogam à roleta russa na mesa de um pátio. O jogo dura há cinco dias, com pequenas pausas para a higiene pessoal e sestas curtas, sem uma única morte. A notícia começa a espalhar-se. Há um ajuntamento. Surge a suspeita de que nenhuma bala está alojada no tambor e pedidos para que abram a arma, mas os jogadores recusam e desafiam quem deles duvida a sentar-se à mesa para jogar também. Ninguém o faz. Passam-se mais dois dias, a assistência não arreda pé. Mais três dias. Dois dias. Um dia. Alguém da assistência decide juntar-se. O jogo prossegue a cinco, sem alterações. Passa outro dia e senta-se um novo elemento. Ao fim de mais alguns dias os jogadores são 11 e a assistência não parou de crescer. Mais alguém decide tentar a sua sorte, puxando uma cadeira mesmo ao lado direito do que acabou de jogar. A pistola vai passando de cabeça em cabeça no sentido horário e o recém-chegado sente cada clique com impaciência. Quando recebe a arma, simula que a aponta à cabeça, mas com um gesto rápido tenta abrir o tambor. O revólver rebenta-lhe de imediato nas mãos. Um estilhaço do cano corta-lhe a carótida direita, o tambor da arma, ainda sólido depois da explosão, fura-lhe a caixa torácica e rompe-lhe o coração. Há mais surpresa que pânico. Ninguém se aproxima do corpo imóvel. A assistência começa a dispersar. Ficam os 4 jogadores. Depois de se certificarem que não há mais ninguém por perto, contam as cadeiras em volta da mesa. Três deles colocam então uma quantia indeterminada mas avultada de dinheiro sobre o pano verde. Após uma pausa, o que não havia jogado a mão ao bolso recolhe o dinheiro todo, com um largo abraço que varre a mesa por inteiro. Depois abandonam o pátio, sem arrumar as cadeiras.

12
Jan10

O segredo


Eremita

Vivia na aldeia um homem discreto, com quem os outros homens simpatizavam, por ser cordial e ter bom ar. Pelo mistério, teria também atraído as mulheres, isto - claro - se chegasse a ir aos bailes. Mal se dava por ele em grupo, mas na companhia de outra pessoa era capaz de ficar a falar pela noite fora e a conversa era depois retomada passado um dia, ao relento se era Verão, a um canto da taberna se fazia frio. Dependendo da cumplicidade, ao quarto ou quinto serão ele sempre falava do "terrível" segredo sem grandes rodeios. Contado o segredo, experimentava um certo alívio, vergonha e total desconforto, sempre por esta ordem. No dia seguinte, faltava ao encontro e não tardava a descobrir outro parceiro para reiniciar o ritual. Passaram-se anos, até que chegou o momento em que todos os homens da vila estavam a par do segredo. Virou-se então para as mulheres e começou a ir aos bailes, mas havia poucas raparigas solteiras; em poucos meses todas elas estavam a par do segredo "terrível". Na impossibilidade de encontrar a quem contar o segredo, o homem emigrou. Por ser ainda novo e não ter de voltar a mudar de lugar, escolheu uma grande cidade.

12
Jan10

O Semanário


Eremita

Um homem acende um cigarro e pousa o jornal sobre a mesa. É sábado de manhã. Vai passando pelas páginas em diagonais, lê as gordas, não se demora nas fotografias. A cadência é constante; remadas de papel no ar; o fio do fumo de cigarro não tem tempo de se recompor. Só perto do fim hesita, não chega a largar o canto da folha e volta atrás. O título familiar de uma coluna chamou-lhe a atenção. Ignorava que o cronista tivesse voltado a escrever. Dizia-se que estava doente. Antes assim. Lê a crónica inteira, com um gozo que reconhece. Depois apaga o cigarro, paga o café que antes pedira e sai, deixando o jornal sobre a mesa. 
Encontra um colega na calçada, cumprimentam-se e antes a despedida fala-lhe do jornal do dia, conta-lhe as novidades: "Mas ele voltou a escrever?" No almoço com os amigos, a mesma surpresa, multiplicada por seis. Fica na dúvida, dirige-se a um quiosque, abre um exemplar do jornal, o homem do quiosque refila, ele paga, acende um cigarro, não encontra a crónica. Passa-se uma semana, novo sábado, o homem entra no café, outro café, outro cigarro, nova edição do semanário, perplexidade: uma fotografia na primeira página mostra a praça que ele contempla, mas em ruínas. Fora um terramoto. Olha então para os lados com um sorriso nervoso, joga a mão a um outro jornal, deixado sobre outra mesa. Desilude-se: era um semanário desportivo. Volta ao seu jornal, confere a data. Nova surpresa: a data era futura, precisamente daí a uma semana. 
Guarda segredo até terça-feira, é internado à quarta, enlouquece mesmo à quinta e na sexta despacham-no para um asilo longe da cidade. No sábado morrem metade dos habitantes da cidade. Fora um terramoto. O homem recupera ao fim de uns meses e recomeça a vida noutra cidade. Novo sábado, novo café, outro cigarro, o jornal sobre a mesa, mas agora virado para um rapaz, a quem ele paga para que leia as notícias em voz alta, depois de confir  a data no cabeçalho.

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