Sim, imensos já escreveram sobre isto e o interpretaram, mas o melhor mesmo é colocá-lo em discurso direto.
“Oh! se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!”
Porque é que isto é especialmente cruel, mais do que se saísse da boca de um senhor de engenho da época? Porque é uma legitimação da escravatura pela própria igreja e, mais do que isso, uma legitimação por alguém visto como defensor dos direitos humanos, o que nos faz pensar que sendo assim, pouca razão haveria para que os que não tivessem esses escrúpulos morais não continuassem tranquilamente com a sua acção de fornecer e aproveitar mão de obra escrava. Apenas isso. Não se está a dizer que o Padre António Veira era um homem mau ou que tivesse um especial prazer em ver os outros sofrer.
A critica ao Padre António Vieira nem sequer tem de ser feita à luz dos valores atuais, com o estafado argumento do “era um homem do seu tempo”, mas à luz das suas próprias contradições e, sobretudo, à luz dos evangelhos, porque não seria difícil para alguém tão esclarecido como o padre ir buscar aos evangelhos alguma luz sobre o assunto.
Há nisto tudo um mecanismo conhecido: faz-se uma acção de protesto, neste caso com a legitimidade acrescida de a pessoa que está à frente ser de origem africana e de ter sobre o assunto uma visão mais aguda, diferente do padrão corrente e “oficial”, pormenor de que toda a gente se está a esquecer. Como na nossa sociedade já passámos (devíamos ter passado) a fase em que há personagens sagradas e intocáveis, seguir-se-ia um debate histórico, que nunca seria tranquilo, obviamente. O que inquina a discussão é precisamente o discurso enviesado de quem acha que tem de vir em desagravo das ofensas ao padre, como se se tratasse de um familiar, ou como se se estivesse a atacar a Igreja, logo, a minar os fundamentos da civilização ocidental, a conclusão estratosférica habitual. Como ainda somos um bocado barrocos, e daí as tremurinhas com a sermónica do padre, não fazemos por menos. A discussão continua e amplia-se neste tom insuportável e pelo meio agitam-se bandeiras de Portugal e canta-se o hino.