Os estóicos da COVID-19
Vasco M. Barreto
Ainda corre por aí a ideia de que o lockdown e outras medidas não-farmacológicas extremas como o rastreamento intensivo foram acções inúteis que ignoram a nossa relação ecológica com os vírus. A persistência desta ideia em múltiplas declinações é desconcertante, pois pode ir da estupidez grotesca do "e daí?" de Bolsonaro à sofisticação aparente da epidemiologista Sunetra Gupta.
Sem alimentar já qualquer esperança de que esta seita de estóicos da COVID-19 algum dia consiga sair do casulo de negacionismo em que se fechou, limito-me a assinalar que muitos deles deveriam estar mortos se fôssemos levar a sério a distinção anacrónica que professam entre ameaças externas (um terramoto), a que devemos reagir como nos defendemos de um inimigo, e internas (as relações ecológicas do homem com outras entidades biológicas, incluindo parasitas e vírus), que na verdade são parte de nós e apenas podemos ir gerindo como se tolera uma sogra malvada. Que os vírus são parte de nós é literalmente verdade e desconfio que muitos destes estóicos nem imaginam como se formou o genoma que os fez. Mas realmente relevante são estas duas noções: 1) o ecossistema em que a maior parte da humanidade vive foi feito por nós; 2) a nossa esperança de vida actual é uma aberração.
Se estes estóicos querem mesmo discutir ecologia, recomendo que aprendam primeiro o que é o extended phenotype e como a cultura forja a ecologia em que hoje todos vivemos. Por isso, como inspiração, sugiro que ponham o Strass a tocar, vão a esta página, inclinem depois um pouco a cabeça, experimentem a epifania do jovem primata diante da sua imagem no espelho e desatem a reflectir ao ritmo dos membranofones.