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OURIQ

Um diário trasladado

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23
Dez16

O problema de Ricardo Araújo Pereira


Eremita

[publicado a 19.12.2016, 22.12.2016 e 23.12.2016 ]

Duvido que esse sketch pudesse ser feito hoje. Eu passo o tempo a dizer: “nisto aparece o coxo”, “o Zé” , respondem-me, acrescento, “e vem o marreco”, “o Fernando”, dizem-me e acabo a falar do “mariconço”. Penso que isso hoje seria impossível. No outro dia escrevi uma crónica a justificar-me, na “Visão”, pelo facto de dizer que sou um mariquinhas quando vou dar sangue, e que mariquinhas não tem nada que ver com um homossexual. Há pouco tempo uma pessoa que eu admiro muito contou-me a seguinte história: foi a um bar e pediu um gin tónico. O empregado disse-lhe que só tinha os copos normais e que não tinha aqueles balões “cheios de paneileirices”. Ao que o meu amigo respondeu: “fico ofendido que diga paneileirices que eu sou paneleiro e isso ofende-me”, e o homem desfez-se em desculpas. Quando há gente que diz ‘estes gins cheios de paneleirices’, quem é que associa isso a homossexual? Ricardo Araújo Pereira ao "i"

Como não frequento as redes sociais, chego tarde ao debate provocado por esta declaração de Ricardo Araújo Pereira (RAP) e é provável que não acrescente nada de novo, mas faz-me bem desabafar. Um dos que reagiram foi Eduardo Pitta:

 

...Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço. Será uma bicha de call center? Um entertainer? Lamento pelo Ricardo, homem culto e inteligente, de quem gosto, mas assim não vamos lá. A sorte dele é ser o Ricardo, caso contrário teríamos meio mundo a dizer dele o que Mafoma não disse do toucinho.

 

Vamos por partes. Sobre a primeira frase: RAP "não lamenta não poder achincalhar os mariconços", o que ele frisa é não poder fazer hoje um sketch sobre a censura à linguagem em que use o termo "mariconço", porque as redes sociais lidam mal com as subtilezas, só são capazes de leituras literais e geram dinâmicas que podem ter consequências aborrecidas (reputações destruídas, perdas de emprego, agressões, etc.) para quem arriscou o politicamente incorrecto. Sobre a segunda: apesar de Pitta excluir "mariconço" no apontamento que faz no post sobre o uso de diferentes sinónimos de "homossexual" de acordo com a classe social (não há quem se deleite tanto com a taxonomia das classes), toda a gente sabe o que a palavra significa no contexto do sketch em questão (corresponde ao "bicha" mencionado por Pitta, isto é, aos homossexuais efeminados e exuberantes) e, se dúvidas houvesse, bastaria abrir um dicionário, pois ainda ninguém se lembrou de aplicar aos nossos a purga com que tentaram higienizar o dicionário brasileiro Houaiss. Sobre a última: "ser o Ricardo", para o caso, não é uma sorte, mas um azar, pois se fosse qualquer outro humorista não teria havido polémica (ou seriam outros os intervenientes - eu, por exemplo, teria ficado calado, porque a minha mulher não aprecia Rui Sinel de Cordes). Também Paulo Côrte Real, num texto mais feliz do que o de Pitta, reagiu, com a tripla autoridade de ser um destacado activista pelos direitos dos homossexuais (e não foi o único), amigo de RAP e o cliente ofendido no episódio citado do gin tónico sem frivolidades.

 

Temo que precisemos de recuar alguns anos. RAP nasceu homem e branco, fez-se alto, elegante, másculo, saudável e inteligente, com um sentido de humor superlativo; revelou-se heterossexual, andou (creio) num colégio católico e licenciou-se pela Católica; casou e reproduziu-se (salvo erro, por esta ordem), e, para não destoar mesmo nada, tornou-se adepto do Benfica nos anos 70, o clube dos "14 milhões de adeptos", e ateu em algum momento, hoje a etiqueta mais confortável de se exibir no mundo ocidental em matéria de religiosidade. Resumindo, a julgar pelo que é público e ressalvando uma eventual crise de acne juvenil penalizadora, RAP não passou por quaisquer dificuldades na vida, como um rio ele foi serpenteando o seu caminho por onde a resistência era menor. Excluindo a carrreira ímpar e fulgurante, o seu percurso é convencional. Quando Sammy Davies Jr., que se fez homem nos EUA antes dos movimentos de conquista de direitos civis, se descrevia como "a short, ugly, one-eyed black Jew", tinha muita graça e toda a autoridade. Quando RAP, um privilegiado pela natureza e berço, insiste no humor autodepreciativo, também ainda tem alguma graça, mas pelo absurdo da inverosimilhança e o paradoxo de já não sobrar ninguém em Portugal e nos PALOP em quem aplicar tão descarada manobra de sedução, pois todos nos rendemos (falta-lhe o Brasil, mas é só uma questão de tempo). A sua carreira, sendo marcada por um humor apresentável, sofisticado e com grande penetração em todos os estratos sociais, foi logo aceite pelas elites, que o reconheceram como um dos seus, pela crítica sedenta de um sucessor para um Herman José então em trajectória descendente, e também pelo grande público. O enorme talento, a bagagem literária e o humor público limpo de RAP, sem brejeirices, sem palavrões, sem fulanizações de gosto duvidoso (como as que Bruno Nogueira fez nos primeiros números de stand up), antes insistindo em caricaturas de tipos sociais e revelando uma sensibilidade rara para as particularidades da língua (sotaques, ritmos, tiques e modas), contribuíram para que todos se quisessem associar ao humorista: os grandes canais de televisão, a maior estação de rádio, os festivais literários, as universidades, a ILGA, enfim, todas as capelinhas, incluindo a inevitável Capela do Rato, e toda a gente, dos previsíveis humoristas mais jovens até aos surpreendentes António Lobo Antunes, tendo em conta a sua misantropia, e Marcelo Rebelo de Sousa, talvez numa lógica de "se não podes vencê-lo...", depois de ter sido ridicularizado por RAP no histórico sketch de 2007 sobre a despenalização do aborto, passando ainda pelo caso - para mim trágico - da minha mulher (o link vale como declaração de interesses). Se nem nos tempos da SIC Radical RAP era um fenómeno de contracultura, nos anos seguintes a sua institucionalização foi completa e, se não foi programada, parece ter sido interiorizada, pois de repente os pullovers e T-shirts foram substituídos pelo invariável fato sem gravata. A RAP não falta sequer a obra "transgressora" nunca oficialmente assumida, o livro O Meu Pipi, cuja autoria é um segredo público, como cai bem a um humorista institucional. Nem Herman, repito, nem o grandíssimo Hermann Joseph Krippahl, cujo talento humorístico é superior ao de RAP e conserva o título de principal figura na história recente do humor em Portugal, gozou de tamanho prestígio no apogeu da sua fama, por não ter um humor tão limpo, nem uma vida privada tão convencional, nem ser um literato, apesar de poliglota, antes um homem fascinado pelo dinheiro e o luxo, nem pertencer à esquerda caviar, nem se ter imposto, como RAP, nos nossos dois grandes universos mediáticos, o da política e o do futebol (não temos tertúlias televisivas sobre o music hall, a paixão de Herman).

 

Descontando o livro mais recente do humorista, que parece ser um ensaio (conto oferecê-lo à minha mulher, para depois o ler às escondidas), o trabalho de RAP, sobretudo nos sketches televisivos, nas crónicas e no Governo Sombra, (o que faz na Rádio Comercial é mais alienante) centra-se em tópicos condicionados pela actualidade cuja análise não é complexa nem gera polémica: as socratices, outros casos de (alegada!) corrupção, o abuso, a sede de poder e tudo o mais que é risível na nossa república ainda algo abananada ou as últimas barbaridades de Pedro Arroja e José António Saraiva são - convenhamos - favas contadas. Como é óbvio, o interesse não está no conteúdo, até porque o grosso do pensamento político de RAP é incontroverso e pouco original, mas no humor. Até muito recentemente, o próprio RAP procurou proteger esse registo, por um lado quase nunca abdicando em público da pose controladíssima, o que lhe permite esconder as suas emoções e contornar o concorridíssimo colunismo da indignação, e, por outro, desvalorizando a relevância das suas opiniões, o que lhe aumenta os graus de liberdade (uma postura decalcada das entrevistas de Jon Stewart, que sempre rejeitou o seu peso político, indo a extremos insustentáveis). Curiosamente, até o público benfiquismo doentio de RAP lhe serve às mil maravilhas, pois pelo contraste cria a ilusão de que o humorista só se preocupa mesmo com o futebol e tudo o resto é apenas substrato para piadas. Tudo mesmo? Não. Há dois outros assuntos muito caros a RAP: a sua vida privada (e acabo de esgotar o tema) e a liberdade de expressão. Não é surpreendente. Um humorista, até um humorista institucional, está para a liberdade de expressão como os canários para a qualidade do ar das minas: ele é o primeiro a sentir na pele e por vezes no pescoço o "ambiente cultural", para recuperar uma expressão de RAP; basta lembrar o célebre Seven words you can't say on television, de George Carlin, ou o que sucedeu há uns anos ao cómico francês Dieudonné. Ora, a liberdade de expressão é o único tema em que RAP tem uma opinião que talvez não seja maioritária entre as elites culturais. Regressemos então à actualidade. 

 

Não tenho o hábito de ler as crónicas de RAP e incomoda-me que se considere o humorista um dos nossos melhores cronistas. Desgosto do ritmo do humor escrito de RAP, como se cada parágrafo fosse para ser interpretado e não lido, e precisasse de uma punch line. E aborrece-me também a técnica pura; prefiro a técnica com o nervo (mas sei que ninguém me acompanha). Se li a a crónica na Visão em que o humorista responde a Pitta, foi por ter sido alertado pela minha mulher, que mencionou algumas inconsistências na argumentação de RAP, o que me deixou a salivar. Curiosamente, mesmo com as inconsistências, trata-se de um texto interessante. E porquê? Porque, sendo uma defesa da reputação e incidindo sobre um tema que fascina RAP, tem nervo. Uma má defesa, acrescente-se já, mas uma boa leitura. RAP reforça a ideia de que vivemos dominados por um puritanismo de esquerda. Esta é uma tese que vem fazendo o seu caminho há alguns anos, lá fora e entre nós. Do ponto de vista formal, é uma tese sedutora, até gira, por atribuir à esquerda impulsos censórios mais associados (por ignorância, receio) à direita conservadora crente e identificar uma contradição aparentemente insanável (o puritanismo de esquerda seria tão antidiscriminatório que, ao circunscrever as minorias a tratar com pezinhos de lã, isto é, de forma diferenciada, acaba por discriminar). [publicado a 22.12.2016] A contradição desmancha-se facilmente, bastando lembrar, como se faz aqui, que a esquerda, em teoria, privilegia a igualdade e a direita a liberdade. Mas mergulhemos. Escreve RAP:

Há uma compulsão actual para a literalidade que leva a que certas pessoas acreditem que as palavras têm um único significado. (...) Quando digo às minhas filhas que não sejam maricas, não estou a pedir-lhes que não sejam homossexuais masculinos. Elas sabem, aliás, que se quiserem ser homossexuais masculinos, o pai não se opõe.  

Esta piada, destacada a marcador amarelo, toma por parvos os leitores. Porque, com quase toda a certeza, o que RAP transmite às filhas quando usa o termo "maricas" é que não sejam cobardes ou medrosas, ou seja, não fica provado com o exemplo que o problema seja a "compulsão actual para a literalidade", porque todos os significados de "maricas" (estão no dicionário) têm uma conotação pejorativa, a menos que RAP ande a esconder alguma dos filólogos lusos. Também o que RAP escreveu sobre a palavra "coxo" é conscientemente primário - João Pereira Coutinho fez a mesma graçola, sinal de que "les beaux esprits se rencontrent", sim, e até no jardim infantil. Coxear não tem a carga identitária do sexo, da cor da pele e da orientação sexual, o que deveria ser evidente, qualquer que seja o posicionamento neste debate. Enfim, são raros os textos coerentes escritos a duas mãos e, neste caso, RAP parece ter ficado com a teoria e pedido ao Diácono Remédios que tratasse dos exemplos... o que não significa que a teoria se sustente. RAP agarra-se à distinção entre as palavras e os actos. A distinção tem pedigree mas degenerou, pois os inimigos do politicamente correcto transformaram o "words are not deeds" de Shakespeare, originalmente uma simples observação sobre a inconsequência do discurso por comparação às acções concretas, num mantra libertador. É evidente que incitar à violência e praticar essa violência têm punições diferentes; as palavras não são os actos que designam. Mas não é verdade, como sugere RAP, que haja uma diferença assim tão substancial entre as palavras e os actos. Não é verdade, por exemplo, que apenas nos possamos apropriar das palavras, como ele argumenta: "Uma ofensa pode passar a ser uma honra [referia-se à apropriação da palavra "queer" pelos homossexuais]. Um soco nunca deixa de magoar." Muito bem. Então e quando uma neta pretende que lhe tatuem no braço o mesmo número que os nazis tatuaram no Campo de Concentração de Auschwitz à avó entretanto falecida? Não será este um exemplo de um acto a metamorfosear-se de ofensa em honra? Num homem que para levar à cena um monólogo teve de decorar o How to Do Things with Words, do filósofo John Austin, surpreende que ande por todo o lado a espalhar de forma tão leviana e sofista que as palavras não são actos, pois Austin estudou as palavras enquanto actos e não meras proposições, havendo toda uma filosofia sobre estes actos de linguagem (por exemplo, no momento em que é proferido, um juramento é um acto que compromete a pessoa diante dos outros). Como se não bastasse, RAP lembrou-se de ilustrar a apropriação do termo "queer" pelos homossexuais, não lhe ocorrendo a possibilidade de estar a  frisar que as únicas pessoas com uma autoridade moral natural para subverter as palavras que estigmatizam são as suas vítimas. 

 

Há muitos anos, aprendi que o termo "mongolismo", até então usado por mim com a inocência dos ignorantes, não resultava apenas da parecença entre as pessoas com trissomia 21 e os Mongóis. Reconheço, com algum embaraço, que esta já seria uma razão suficiente para não usar o termo, mas a associação de "mongolismo" e "mongolóide" a uma deficiência é muito mais negra, por se tratar de uma herança do racismo científico que vigorou no século XIX. À época, havia uma divisão dos seres humanos em 5 raças, a Asteca, a Caucasiana, a Malaia, a Etíope e a Mongol, segundo uma hierarquia que, sem surpresa, colocava os Caucasianos no topo. John Langdon Down, tendo reparado em algumas parecenças físicas entre os indivíduos com a síndrome que receberia o seu apelido e os Mongóis ("... A face é plana e larga, destituída de proeminência. As bochechas são arredondadas e alargadas lateralmente. Os olhos estão posicionados obliquamente..."), interpretou a parecença como um caso de "retrogressão", uma espécie de atavismo sistémico que revelava características próximas de uma raça mais primitiva. Só em 1959 teve início o movimento de censura do termo "mongolóide", que envolveu médicos e a própria Mongólia. Trata-se de um caso extremo, por dizer respeito a pessoas com uma deficiência, mas um bom exemplo de que "a linguagem é mais complicada do que parece" (RAP), e que talvez ajude a refrear os críticos do politicamente correcto, hoje tão irritados com o protagonismo dos homossexuais e das feministas. 

 

O actual "ambiente cultural" não é mau. Sendo péssimo em muitas universidades norte-americanas, espaços em que o politicamente correcto se tem vindo a manifestar de forma algo histérica (outra palavra carregadinha de etimologia e História), continua a ser nessas universidades que têm lugar os melhores debates sobre os temas fracturantes, incluindo o que discuto neste post (basta ir ao Youtube). Mas este tema, de certo modo, é um produto importado dos EUA, sem grande correspondência em Portugal (lembra os debates sobre o Criacionismo, um movimento sem expressão entre nós). Salvo erro, os dois casos mais graves de censura cultural neste país praticados por instituições relevantes, nomeadamente as do Estado, incidiram sobre o sketch de Herman a fazer de Rainha Santa Isabel (1988), que não chegou a ir para o ar, e o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, vetado por Sousa Lara de concorrer a um prémio (1992). Foi há mais de 20 anos e os pruridos eram dos católicos, não das feministas ou dos homossexuais. O que houve de mais grave desde então? As redes sociais? 

 

RAP queixa-se das redes sociais, na rádio, na televisão, nos jornais e nas entrevistas que o seu agente lhe marca, parecendo não perceber o que levará uma pessoa que não aparece na rádio, na televisão e nos jornais, nem tem um agente, a abrir uma conta no Facebook. De facto, é um mistério insondável. As redes são caricaturadas como um espaço dominado pela trivialidade, a vaidade, a exposição da vida privada, o ódio, a inveja e a maledicência. Não foi essa a minha experiência directa enquanto as frequentei. Cada um tem alguma autonomia para definir a sua rede, sendo possível evitar os radicais dos direitos dos animais que ficam com vontade de assassinar famílias inteiras quando morre um cão. É possível pertencer a uma rede de amigos e pessoas com quem temos afinidades, e usá-la para permanecer em contacto, estar atento ao mundo e encontrar uma namorada, afinal a função original do Facebook. A qualidade média da discussão e da escrita no Facebook, bem como a atenção, é muito inferior à que se consegue com uma rede de blogs, pelo que não me convence como espaço de troca de ideias, e é óbvio que se trata de uma máquina de recompensa imediata, desenhada para viciar. Mas é o que temos e como voz popular sem mediação não se arranja melhor. Para uma figura pública as rede sociais podem ser assustadoras, admito. Antes as figuras públicas escreviam e falavam dos media para uma massa anónima que, excluindo uns quantos telefonemas para a RTP e cartas para os jornais, era passiva, tão passiva, dócil e sorridente como a moldura humana do programa Governo Sombra. Para a figura pública, hoje cada cidadão tem acesso a um púlpito e a massa, antes passiva, encarnou uma propriedade emergente e fez-se um monstro susceptível, caprichoso, cego à ironia e a outras subtilezas de linguagem, pronto a acreditar em qualquer coisa que o indigne, sempre sequioso, e por isso capaz de devorar figuras públicas ou simples cidadãos ao pequeno-almoço. A pressão aumentou, é mais comprometedor falhar e não medir o peso das palavras. Naturalmente, as figuras públicas descobriram-se nostálgicas e mais cautelosas. Um dos sinais dessa cautela foi a transformação de programas de debate com um elevado grau de imprevisibilidade (hoje um perigo) em produtos televisivos ridículos, com cada elemento do painel a debitar as notas que preparou em casa, sem interacção substancial com os outros elementos, que muitas vezes repetem o que foi dito (o Eixo do Mal é o melhor exemplo). Mas não há assim tantos empregos perdidos por causa das redes sociais (ou o exemplo citado não seria sempre o mesmo, curiosamente o de uma simples cidadã que teve muito azar com uma piada no Twitter) e apesar de casos de uma injustiça deprimente, como o que sucedeu ao cientista Tim Hunt, espezinhado pela estupidez das multidões e a mentira, já não há pachorra para os lamentos diários das figuras públicas sobre as redes sociais e o "esgoto" que são as caixas de comentários dos jornais. Se os ilustres colunistas tivessem a humildade de responder nessas caixas aos seus leitores que fizeram os comentários mais pertinentes (são poucos, mas existem), talvez o ar, aos poucos, desanuviasse. Acaba aqui a minha defesa do Facebook, que já abandonei e deve ser defendido por quem não se importa de ocupar um espaço que censura a nudez da menina vietnamita de uma fotografia famosa

[23..12.2016]

Um dos problemas de alimentar num plano meramente teórico discussões sobre a liberdade de expressão e o politicamente correcto é a dificuldade de conceber uma teoria precisa, objectiva e abrangente que vá além do trivial, por nos faltar um referencial comum. No caso presente, não é fácil determinar se, na interacção com o barman, Paulo Côrte Real não se terá mostrado demasiado susceptível, se, na posterior divulgação do diálogo no Facebook, não terá mostrado algum bravado, e se, na resposta a RAP, não terá abusado da vitimização. Quanto a isto, só posso ter dúvidas, nenhuma certeza. Um heterossexual não sabe o que é crescer rodeado de homofobia, um branco não sabe o que é ter a cor de pele errada numa sociedade de brancos, um homem não sabe como uma mulher é condicionada, alguém sem dificuldades económicas e saudável não sabe o que é sustentar uma família com o salário mínimo, nem sabe o que é viver com uma doença crónica ou nascer com uma deficiência. Este desconhecimento é minorado pela empatia, mas a empatia tem limites e fica aquém da imaginação. Porém, sabemos o que é uma reacção proporcionada e somos todos Charlie. Se RAP defende que ninguém tem o direito a não ser ofendido, bem, recorrendo à sua distinção entre palavras e actos, só lhe resta também defender que todos têm o direito de expressar a sua indignação por palavras. E enquanto tudo se resumir a trocas de palavras entre cidadãos, isto é, com censura social mas sem censura oficial (sem leis contra o negacionismo, por exemplo), o "ambiente cultural" não será mau. 

 

Haverá então limites para o humor? Sim, há limites que quando ultrapassados fazem com que o humor se evapore e sobre apenas a ofensa gratuita. Mas são limites fluídos e circunstanciais, que dependem de muitíssimos outros factores e variam de pessoa para pessoa, pois diferimos na autoridade moral natural para fazer humor com os temas delicados. Ninguém pode definir estes limites com precisão, é exactamente como em tempos um juiz do Supremo Tribunal dos EUA escreveu sobre a pornografia: "I shall not today attempt further to define the kinds of material I understand to be embraced within that shorthand description ["hard-core pornography"], and perhaps I could never succeed in intelligibly doing so. But I know it when I see it, and the motion picture involved in this case is not that". Isto é muito incómodo para um humorista, porque não havendo um limite definível e oficial, ele tem dificuldade em se colocar na posição do mártir da liberdade de expressão que luta contra o opressor. E o incómodo atinge o cúmulo no caso de um homem streamlined para o sucesso na sociedade em que nasceu, e por isso com uma capacidade de empatia que será sempre posta em dúvida, e que se tornou no humorista mais institucional do país, o que lhe diminuiu ainda mais a autoridade moral para brincar com os temas delicados. Paradoxalmente, a única safa que o humorista tem é mesmo o humor. É por isso que RAP não deveria andar por aí ubiquamente a espalhar doutrina sobre a liberdade de expressão em entrevistas e crónicas mal amanhadas. Porque, em teoria, ele pode brincar com os "mariconços", desde que a piada seja boa. O seu problema, por se ter institucionalizado, é que a piada deve ser mesmo muito boa. Generalizemos: quanto menor for a autoridade moral natural do autor, maior terá de ser a qualidade do humor que ele nos oferece para não ser vítima da indignação colectiva. RAP já teve mais autoridade moral natural para gozar com os temas delicados e deve senti-lo. Só lhe falta perceber que mudou muito mais ele do que a sociedade. E talvez um amigo chegado lhe possa explicar que não engana ninguém com o humor autodepreciativo. Por isso, insisto: a solução para RAP não é continuar a desmaiar por aí como um canário e a fazer teoria, antes insistir no humor. Precisa é de ser algo tão bom como este sketch de Louis C.K. sobre a palavra "faggot" e outras, um sketch que consegue passar de forma eficaz as ideias que RAP defende de modo atabalhoado e contraproducente quando teoriza. RAP pode até imaginar as atribulações de um trissómico 21 na Mongólia, mas neste caso terá de ser ainda melhor do que Louis C.K. Boa sorte. 

 

 

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