O negacionismo de Henrique Pereira dos Santos (7)
Eremita
Ninguém está a salvo do negacionismo
Um dos grandes equívocos sobre os cientistas diz respeito ao que os move. É por isso que não me canso de recomendar uma cena do filme Life Aquatic, de Wes Anderson. Não descreverei a cena, sugiro que a vejam já (dura pouco mais de um minuto) e retomem depois a leitura... Segundo uma visão lírica, o cientista é guiado por uma sede de saber pura. Quase nunca é assim. A motivação real de um cientista, sobretudo quando já tem skin in the game, pode ser muito pouco nobre. Muitas vezes, o que o move é a sede de protagonismo e poder, o desejo de provar que são os outros que estão errados e não ele, a competição pela competição, até a vingança. Mas cientistas venais podem fazer ciência virtuosa, basta que não deixem que as suas pulsões corrompam as regras deste jogo. Também nesta querela com HPS seria hipócrita passar a ideia de que me move apenas o desejo de limpar o espaço público do lixo cognitivo que HPS andou a despejar desde Março. Como deve ser evidente, a verdadeira motivação é egoísta: pretendo sobretudo limpar a acusação de mentiroso que HPS me fez repetidas vezes. Mas recorrendo a uma lógica consequencialista, a minha motivação é irrelevante; o que importa é saber se respeitei as regras do jogo e se consegui limpar o lixo de HPS sem acrescentar lixo meu. Essa avaliação não será feita por mim.
O negacionista é geralmente visto como uma figura marginal, frustrada e rancorosa, que se refugia num mundo alternativo. As suas teses podem ser desconcertantes pela idiotice (e.g., os flat earthers e homeopatas) ou repugnantes pela miséria moral (e.g., os negacionistas do Holocausto). HPS não tem nenhuma destas características. Não o conheço, mas daquilo que fui lendo no Corta-Fitas, imagino-o como um cidadão bem integrado, com uma família e uma carreira profissional reconhecida pelos seus pares, uma prática de cidadania e um inegável gosto pela polémica. Porém, a sua constante negação da evidência no caso da epidemiologia da COVID-19 tem todas as características de negacionismo. Não sendo um negacionista enquanto figura social, praticou negacionismo entre Março e Junho de 2020. Não chega a ser uma diferença subtil de difícil apreensão, sobretudo por existir na nossa língua o binómio ser/estar e fazermos parte de gerações educadas no contexto da discussão sobre o VIH para as vantagens de substituir a catalogação de grupos (os homossexuais e os toxicómanos) pelos comportamentos de risco (o sexo anal desprotegido e a partilha de seringas). HPS não será um negaciomista, ele apenas esteve e eventualmente ainda estará em estado de negação. Esta será uma conclusão batida e seria idiota e contraproducente forçar um paralelo deselegante, mas o caso de HPS fascina mesmo por nos sugerir que ninguém está a salvo deste mal, nem sequer um cidadão de mérito profissional reconhecido, mentalmente equilibrado e com um doutoramento atribuído por uma faculdade de ciências (do Porto). Em condições sociais excepcionais como as que vivemos, pode ser que baste uma combinação rara de soberba e capacidade cognitiva, motivação ideológica, incentivo e cumplicidade de fãs, e ainda algum infortúnio (como o terrível encontro com André Dias no percurso intelectual de HPS) para que o negacionismo grasse em quem menos se esperava.
HPS declarou que se sentia movido pela "coisa inglória e quixotesca de procurar contribuir para a racionalidade na gestão da epidemia em curso". Que tenha decidido fazê-lo com reiterada irracionalidade é um mistério que só ele terá interesse em compreender a fundo, apesar do meu indisfarçável fascínio antropológico por ele. Escreveu também: "que não nos falte coragem para reconhecer isto", num texto de título "Enganámo-nos provavelmente". Mas ninguém se enganou mais vezes do que HPS e a ninguém faltou tantas vezes a humildade de reconhecer as asneiras e a sensatez de parar um pouco para se pôr em causa, interrompendo uma frenética sucessão de textos com todas as características de uma fuga para a frente.
Não mais incomodarei HPS no Corta-Fitas, sobre este ou qualquer outro assunto, nem mesmo se ele começar uma campanha ainda mais grave, como negar o génio de Paco de Lucia. Assim se interrompe uma interacção desagradabilíssima para ambos. HPS acusou-me de “instabilidade emocional” e na altura fiquei ofendido, mas ao reler algumas das nossas trocas de impressões a minha exasperação é notória e este reparo de HPS terá sido uma das suas raras observações certeiras. As mentiras sem acusar qualquer necessidade de reposição da verdade, as manipulações, as omissões, o ultrapassar constante dos limites da interpretação das suas passagens, enfim, as imperfeitas aldrabices com que HPS tentou passar uma tese sem pés nem cabeça eram tão desgastantes como viciantes. Mas aprendi a lição. Por isso, ignorarei o desesperante toca e foge de guerrilha intelectual de HPS, ou seja, as suas respostas incompletas e evasivas. Para voltar a perder mais tempo com este assunto, HPS teria de me processar por difamação ou responder ponto por ponto às acusações que lhe fiz no seu blog e aqui reitero. Como não o fará, caberá a outro a missão de lhe dizer as vezes que forem necessárias que ainda vai a tempo de perceber uma evidência: não reconhecer as tolices que andou a escrever só o limita como interlocutor noutras discussões em que até parecia ter ideias válidas. Insisto nesta ideia: na área dele, eu considerava-o uma autoridade, um conceito cada vez mais útil para nos guiarmos com economia de tempo na cacofonia polifónica em que vivemos. Mas depois de testemunhar a forma vergonhosa como lidou com a epidemiologia, não mais poderei confiar naquilo que escreve sobre o que quer que seja. HPS perdeu um leitor. Quem se derrotou a si próprio não foi o Sars-Cov-2.
Optei por não continuar a maximizar a exposição e número de visitas. Despachei os três últimos textos de uma vez para arquivar o assunto. Porque a vida é curta.
FIM