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Um diário trasladado

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21
Jun20

O negacionismo de Henrique Pereira dos Santos (4)


Eremita

Precipitação e viés de confirmação

Uma das características de quem se deixou aprisionar num pensamento circular é a acusação de que a circularidade está nos outros. O pensamento de HPS é a pura definição de circularidade pois ele decretou que as medidas de confinamento não resultam e passou o tempo a negar a evidência contrária. Mas para ele são os epidemiologistas que passam o tempo a mostrar que o confinamento funciona porque não admitem outra possibilidade. Para chegar a esta conclusão, HPS criou uma caricatura que pudesse criticar. Muitas teorias, quando simplificadas na forma de slogan, soam a circularidades. Até um expoente da epistemologia como Karl Popper julgou ter detectado uma tautologia na teoria da evolução: quem sobrevive são os mais fortes... que são aqueles que sobrevivem. Mas como muito bem explicou Ernst Mayr num trabalho clássico sobre a história da Biologia, a teoria da evolução inclui várias dimensões (vídeo curto!) e não é redutível ao bordão the survival of the fittest (que nem sequer foi inventado por Darwin, apesar de ter sido depois por ele adoptado). Esta referência vem com uma esperança: se Kopper foi capaz de mudar a sua opinião sobre a teoria de Darwin, talvez quando tudo amainar também HPS possa rever a sua posição e passar a olhar para os epidemiologistas como cientistas e não membros de uma seita embrenhada num programa metafísico com as mesmas características da psicanálise freudiana ou do materialismo histórico de Engels e Marx, ou seja, praticantes de uma pseudociência que a validação empírica não pode sequer beliscar.

Não cometerei a imprudência de provar que HPS está errado sobre a epidemiologia em geral e as causas que levaram ao controlo da pandemia nos diferentes países por onde o Sars-Cov-2 passou. Seria preciso rever a já abundante evidência à escala dos países (a China e as medidas de confinamento extremo, a Coreia do Sul e o rastreamento maciço, a Suécia vs. países vizinhos,  a correlação entre a gravidade da epidemia e resposta dos governantes, incluindo a hesitação de Johnson, a incompetência de Trump e a loucura de Bolsonaro, já muito próxima do genocídio pela negação evidente e ostensiva da ciência) e também a imensa evidência à escala regional, como o caso de sucesso pela adopção de medidas não-farmacológicas que foi Veneto, na Itália. Este annus horribillis para todos é também um ano milagroso para os epidemiologistas pela qualidade dos dados que estão a ser registados. Não tenho tempo para rever e sintetizar toda esta literatura. Se HPS interpretar esta desistência como uma derrota minha, não perderei depois o tempo que contava poupar a mostrar que o motivo não era esse — seria uma contradição minha idiota e esta série de textos já é, em larga medida, um overkill difícil de justificar. O princípio que ponho em prática é muito simples e, ao contrário das teorias complexas, os princípios resistem bem à redução a aforismos: extraordinary claims require extraordinary evidence (Carl Sagan). Em nenhum momento HPS foi capaz de reunir a evidência necessária para que se pudesse começar a dar algum crédito à sua tese extraordinária. A evidência sólida sobre a ausência de imunidade de grupo e a ausência de evidência sobre qualquer outra causa (poluição atmosférica, radiação ultravioleta, enfraquecimnto do vírus por degenerescência genética, etc.) capaz de explicar as diferentes curvas registadas nos diferentes países leva qualquer pessoa racional a concluir que foram as medidas não-farmacológicas a vergar as curvas, mesmo sem recorrer a argumentos de autoridade ou demonstrações matemáticas complexas e incompreensíveis para o cidadão comum. Basta usar o princípio da parcimónia: a eficácia das medidas não-farmacológicas é o cenário mais simples e não temos nenhuma evidência sólida que nos leve a complicar esta explicação. Não se trata de defender a aplicação sem critério de medidas não-farmacológicas, limito-me a fazer uma simples defesa do bom senso.

Um exemplo claríssimo do pensamento viciado de HPS foi a forma como reagiu às novidades sobre a imunidade de grupo. HPS voltou a mentir há uns dias quando apareceu aqui para afirmar e reafirmar: 

...mas reparei que o texto dizia que eu defendo que as epidemias param quando se atinge a imunidade de grupo.
É mentira.

(...)

É mentira e não tem maneira de dizer o contrário a partir dos textos que escrevi.
Simples.

HPS,  17.06.2020

A lata deste homem é profundamente revoltante, mas chega a dar pena. Comparado a HPS, Pedro não negou que conhecia Cristo assim tantas vezes. HPS só pode estar a ser vítima de uma memória selectiva mais zelosa do que a melhor das enfermeiras na preservação dos sinais vitais num pavão incapaz de reconhecer as asneiras sem arriscar uma apoplexia. Nos últimos dias, dei exemplos graúdos e miúdos da flagrante da incapacidade que HPS tem em assumir os seus monumentais erros. Prometo o exemplo mais indecente para amanhã e o mais ridículo de todos para terça, mas este resolve-se já. A grande dificuldade não é encontrar a agulha no palheiro da abundante prosa de HPS que o desminta quanto à importância que atribuiu à imunidade de grupo; a dificuldade é mesmo qual escolher, já que foram tantas. Talvez esta: 

Mas à medida que há mais gente infectada, portanto, não infectável, a probabilidade do vírus infectar alguém nesses três dias decai rapidamente porque mesmo que chegue aos pulmões dos que já foram infectados, deixa de estar activo porque é anulado pelos anti-corpos, ou seja, o vírus entra num beco sem saída. (não, não é preciso esperar por ter 60 a 70% da população infectada para que isto aconteça, é uma evolução progressiva).

Foi este processo, e não a ditadura chinesa, que parou o alastramento da epidemia na China, na Coreia e na Itália (para os que estranharem, a mortalidade na Itália tem hoje uma sólida tendência decrescente, o que significa que há uma semana atrás a infecção iniciou também uma sólida descida). O Sol e a Fúria, 2.04.2020

Esta passagem é de Abril de 2020. Sabemos hoje que não foi a imunidade de grupo a vergar a epidemia. Porém, não sobram dúvidas de que era essa a tese (ou uma das teses) de HPS. É verdade que ele tinha outras ideias bizarras no início, muito mal definidas e — francamente — incompreensíveis. Mas o que destaco a amarelo é uma definição inconfundível de imunidade de grupo. HPS podia estar convencido de que não seria preciso chegar ao limiar previsto pela equação clássica e se ainda tiver pachorra para me responder só lhe restará frisar que a epidemia começa a abrandar ainda antes desse limiar, seja ele qual for, na sua estratégia assente numa literalidade e picuinhice absurdas. Enfim, se este simples confronto de citações não chega para concluir que estamos na presença de um reiterado bullshitter, o que será preciso?

Apesar de menos urgente do que tapar logo a brecha no dique da razoabilidade que hoje a voz de HPS representa sempre que se manifesta sobre epidemiologia, é muito mais interessante analisar o seu entusiasmo precipitado com o que ia saindo na imprensa sobre a imunidade de grupo no contexto da COVID-19. Há uma dimensão de pequena tragédia nesse entusiasmo. A ilusão de juventude que nos resta a partir de uma certa idade é mesmo o investimento numa aprendizagem nova (de um instrumento musical, de um país que se escolhe para destino turístico, de um prato de cozinha, de uma qualquer área do conhecimento). Mas quando essa aprendizagem apenas revela o grau de enquistamento a que os anos de vida ou circunstâncias particulares nos conduziram, assistimos à negação da juventude.  Falta ao entusiasmo de HPS a candura — além do estado de graça— de uma Catarina Furtado a falar sobre a sua gravidez como se fosse a primeira mulher a ter engravidado no planeta Terra (esta saquei de um blog desaparecido: Perguntar não ofende). Quando ele se entusiasmou com a ideia de heterogeneidade nas populações (que pode baixar o limiar da imunidade de grupo), reagindo como se a sua epifania também assinalasse o momento em que um conceito com décadas de existência tivesse também entrado na consciência dos epidemiologistas, ou quando reagiu em pose taxativa e triunfante aos 14% de seropositivos de Ganglet, na Alemanha, ou ainda quando gritou um sonante "Eureka!" a propósito do modo preferencial de transmissão do vírus, em todos esses casos testemunhámos o deslumbramento de um homem iludido com a aparente confirmação das suas ideias. Veio a provar-se que estava tudo factualmente errado, tudo mesmo, but that's not the point. O que importa frisar é o estado mental de um homem que não só atribuiu à imunidade de grupo o fim da epidemia da COVID-19 como provavelmente em Abril teve sonhos húmidos com a imunidade de grupo. Que ele ainda tenha a lata de afirmar e reafirmar que não disse que as epidemias param quando se atinge a imunidade de grupo é mais um daqueles casos paradoxais em que a pessoa inteligente consegue ser muito estúpida. E se HPS voltar a dizer que menti sobre este assunto, sugiro que se interne num hospício ou se prepare para se defender na justiça de uma acusação de difamação.

Amanhã descreverei a maior aldrabice que HPS escreveu até agora sobre a COVID-19.

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