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Um diário trasladado

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18
Jun20

O negacionismo de Henrique Pereira dos Santos (3)


Eremita

Conversa engripada

Comparar a COVID-19 e a gripe foi um exercício popular entre os relativistas da gravidade da COVID-19. A gripe parecia ser o exemplo ideal para ilustrar o aparente alarmismo que alastrara pelo planeta. Tal como a COVID-19, a gripe é uma doença infecciosa viral das vias respiratórias frequentemente fatal entre os mais idosos e que mata muito por ano (99 000-200 000294 000-518000 ou 290 000-650 000 pessoas, considerando três estimativas recentes). Porém, ao contrário da COVID-19, que no fim de Março tinha feito menos de 40 000 mortos oficiais em todo o mundo, a gripe quase nunca abre noticiários e há décadas que não paralisa continentes inteiros. Haveria melhor comparação para expor os dois pesos e duas medidas? Lamento, mas nem sequer em Março a comparação era persuasiva. Tratou-se de mais uma das manobras reaccionárias clássicas e está identificada há muito tempo como uma falácia, apesar de a palavra que agora usamos para a descrever ser um neologismo que apenas ganhou popularidade recentemente: "whataboutism". A fórmula "E daí? Se [a gripe] também [mata] e não [fechamos o país]..." visa pôr a nu uma hipocrisia ou inconsistência do oponente, mas muitas vezes expõe apenas a limitada mundividência de quem faz o reparo. Vejamos. A novidade estimula-nos mais do que a rotina e, quando como novidade temos uma doença altamente contagiosa capaz de matar, é natural que haja uma mobilização de recursos e atenção que não acontece com as causas de morte que se tornaram rotina. Este mecanismo psicológico pode criar injustiças, mas é-nos intrínseco. HPS, que diz saber alguma coisa da teoria da evolução, não desconhecerá o valor evolutivo do medo e a ligação entre o medo e a modulação da memória, a vontade e a mobilização da atenção. Nesse sentido, comparações entre a COVID-19 e a gripe, acidentes rodoviários, mortes atribuíveis à obesidade ou outras entretanto domesticadas pela experiência ignoram a nossa constituição neuro-hormonal, sendo destituídas de sentido. Não decorre desta trivialidade que a política se deva guiar por impulsos primários. A boa política é, muitas vezes, precisamente a arte de contrariar impulsos primários como o tribalismo, tal como a boa literatura é uma war against cliché e a boa ciência poderia ser definida como uma guerra contra o senso comum, como tão bem explicou Lewis Wolpert em The Unnatural Nature of Science. Significa apenas isto: 1) que as comparações ditas óbvias também podem ser primárias, devendo sempre ser questionadas e eventualmente combatidas; 2) que qualquer modelo sem o medo como parte integrante do ser humano não é muito sofisticado. Por isso, a comparação com a gripe foi um daqueles exemplos de hiper-racionalidade tola ou tique de idiot savant sem a menor inteligência emocional ou percepção da condição humana e, cada vez que alguém ensaiava a conversa da gripe, reemergia na minha memória a passagem de algum Lonely Planet onde li que cocos a cair de coqueiros matam mais homens do que ataques de tubarões, que fora escrita como se depois dessa revelação o leitor com fobia de tubarões fosse logo mergulhar de cabeça no mar de alguma remota praia australiana sem barreira de protecção contra o great white shark. Talvez gerações vindouras superiormente inteligentes arquivem na secção de terror ou suspense um filme sobre um coco serial killer de carecas veraneando nas Caraíbas em que o fruto assassino só aparece explicitamente no último terço da fita, mas eu declaro-me na etapa anterior de evolução da espécie e classificaria o filme como um flop ou objecto de culto na linha da obra do trapalhão Ed Wood. Vamos à gripe. 

Havia suficientes incógnitas e indícios em Março para considerar a COVID-19 uma doença potencialmente muito mais letal do que a gripe. Não revelar apreensão, sobretudo no caso de quem está em grupos de risco ou tem amigos ou familiares em grupos de risco, seria uma atitude anormal. Mas a maior parte daqueles que usaram a gripe como termo de comparação desconheciam o buraco onde se estavam a enfiar, porque a comparação é tecnicamente muito complicada. Aceite-se que, no argumento moral com base no número de mortos da gripe contra a obsessão provocada pelo Sars-Cov-2, devemos usar apenas o número de mortos resultantes do vírus da gripe. Primeiro problema: quem começar a ler sobre a gripe percebe que na estatística daquilo a que se chama "gripe" tradicionalmente incluímos também doenças bacterianas, como as pneumonias provocadas pela bactéria Streptococcus pneumoniae, entre outras. Não vale a pena discutir aqui as razões históricas e práticas para esta agregação, que continua a ser debatida entre os especialistas, bastando frisar que qualquer pessoa de boa-fé entenderia que na comparação com a COVID-19 teríamos de subtrair as mortes provocadas por infecções bacterianas, a menos que a comparação fosse uma espécie de Sars-Cov-2 contra os principais os agentes patogénicos que atacam as vias respiratórias, como aqueles jogos que ninguém leva a sério em que a selecção de um país defronta "o resto do mundo". Mas boa-fé é algo que tem faltado a HPS neste debate, como se percebeu quando critiquei a inclusão das mortes por pneumonia de causa bacteriana, que o deixou num característico modo defensivo rígido e irritante. Quando atinge tal estado, a defesa de HPS tem características de infantilismo e obsessão compulsiva, pois assenta na reiteração de uma literalidade extrema (a crítica não é válida se for usado um sinónimo e não a palavra que ele usou) e na desresponsabilização (ele não pode estar a aldrabar porque o gráfico não foi feito por ele, como se o que estivesse em causa fosse o gráfico em si e não a utilização que dele é feita). A incapacidade que HPS tem em assumir os erros óbvios que acumula na discussão sobre a COVID-19 é um verdadeiro mistério, porque há inclusive provas de que no início ele foi capaz de espontaneamente reconhecer em público um erro que publicou na imprensa e de acusar o erro adicional que cometeu na sua emenda. Será por não se sentir obrigado a corrigir o que não chega à imprensa e apenas põe no blog?  Ou será que a partir de um certo nível de irritação, que cedo se instalou entre nós os dois, ele julga que o dever de honestidade passa a ser facultativo? Não vejo outras explicações. 

Mais um exemplo: na ânsia de inflaccionar os números de mortes devidas à gripe de formas progressivamente mais criativas e desesperadas e também de me apanhar em falso, HPS interrompeu um dos seus amuos para escrever:

Abro uma excepção para lhe deixar o link para o relatório do CDC europeu sobre a época de gripe de 2014/2015, não por si, mas porque alguém pode ter interesse em verificar se o que diz nesta matéria tem algum fundamento, permitindo a essas pessoas comparar o disparate de dizer que a gripe mata até 72 mil pessoas na Europa com a conclusão do relatório de que, nesse ano, terão morrido 217 mil pessoas acima dos 65 anos. HPS, 24.04.2020

A precipitação foi tanta que HPS tresleu o relatório e equiparou o número de mortes em excesso no Inverno na Europa (de cidadãos com mais de 65 anos) ao número de mortos por gripe Europa. Com esta operação, o total de mortos na Europa (incluindo todas as idades), que pode ir até aos 72 mil que referi, passou a 217 mil mortos só entre os Europeus acima dos 65. O Inverno está obviamente associado aos picos de gripe mas também a outras doenças com padrão sazonal, como a trombose coronária, o que explica os números. Repare-se que não desconfiar de um número (217 mil) que atribui um terço das mortes de gripe por ano aos europeus acima de 65 anos só pode vir de quem, mesmo com o número global de mortos fresco na memória, não sabe que a gripe mata sobretudo fora da Europa (em termos absolutos e relativos). Enfim, os lapsos são toleráveis. Mesmo um lapso que triplica o número de cidadãos mortos por causa de uma doença é tolerável. E até mesmo a série de lapsos relapsos de HPS é tolerável. Mas como tratar alguém que abandonou depois a discussão sem reconhecer o erro e deixou passar outras possibilidades explícitas de se redimir? HPS,  sempre lesto nas acusações de "desonestidade intelectual" e mentiras, só pode mesmo ser tratado como um bullshitter, porque não tem a menor preocupação com a verdade. 

Até ontem, creio que consegui evitar responder a insinuações de HPS sobre a minha falta de inteligência e o estado do meu cérebro. Gosto de elogiar a inteligência das pessoas que me impressionam, mas só acuso alguém de burrice — como ontem sucedeu — quando estou irritado, arrependendo-me logo a seguir. A inteligência é muito condicionada pela genética e o meio socioeconómico, estando por isso mais perto de ser uma bênção da sorte — como a beleza — do que uma conquista merecedora de aplauso ou um defeito criticável; catalogar alguém como burro é quase tão cruel e absurdo como acusar alguém de ser baixo ou sofrer de hirsutismo. Seria também uma sacanice acrescida fazer insinuações desse tipo quando se discute num campo mais próximo da minha área de formação do que da de HPS. De resto, creio que HPS tem uma inteligência acima da média. O mistério é mesmo explicar como alguém inteligente, com um doutoramento e traquejado em polémicas pode produzir algumas respostas tão estúpidas. Insisto na tese: a inteligência de HPS foi maniatada pela sua soberba. Só isso explica uma conversa digna da casa dos loucos de Os Doze Trabalhos de Astérix, em que eu procuro explicar que é a combinação da possível maior mortalidade (na altura desconhecida) com o estado de provável virgindade serológica universal da população para o SARS-CoV-2 que tornava o vírus potencialmente muito mais perigoso do que o vírus da gripe. HPS, com base em comparações abusivas e precipitadas, e ainda uma lógica demente, concluiu então taxativamente que estes elementos que eu fornecia só reforçavam a tese de que o vírus da gripe era mais perigoso. A lógica dele era a de que, numa situação de — digamos— igualdade de oportunidades, ou seja, sendo a imunidade na população a cada um dos dois vírus a mesma e havendo e medicamentos igualmente (in)eficazes para uma e outra doença, a gripe seria mais mortífera; imaginemos um Cortéz engripado a chegar ao México e um Pizarro com COVID-19 a entrar no Peru: quem sofreria mais, os Aztecas ou os Maias? A resposta, incerta, só é relevante para uma cabeça maniatada e interessada em ganhar discussões tontas à base de formalismos como HPS, porque a verdadeira questão era saber se nas condições actuais o Sars-Cov-2 era ou não mais ameaçador do que os vírus da gripe e os elementos que eu referia faziam o Sars-Cov-2 potencialmente bem mais periogso do que o vírus da gripe.  Reler aquela conversa hoje não capta o nonsense de então, porque a realidade tratou de transformar os "factos" de HPS em falsidades e aquele nonsense desconcertante e de aroma irresistível foi substituído pelo cheiro nauseabundo da comida fora de prazo. 

Para os relativistas da COVID-19, as imagens e relatos terríveis que chegavam de Itália foram uma maquinação dos media que gerou uma retroacção positiva e acabou criando uma alucinação e psicose colectivas. Não sei se é esta também a tese de HPS, cujas reflexões de pendor conspirativo parecem incidir exclusivamente sobre a China (se quiserem detalhes, apareçam na terça-feira), mas junto um relato de um médico italiano que passou por aquela experiência terrível, desvalorizada com manipulações estatísticas grosseiras e desinformação pelos extraordinários André Dias  e Cristina Miranda:  "This is something I never saw in my life (...) The speed of the disease is very high and (while) the risk for individuals is low-ish, two, three, possibly four percent are at risk of death… the number of infected people is so high that globally it's like a war.” Também nos EUA houve relatos terríveis e a mesma perplexidade resultante do confronto entre a experiência no terreno, incluindo a escassez inédita de ventiladores, e as teses que os relativistas iam parindo no conforto de suas casas.

HPS, como todos os relativistas, dedicou-se ainda a um estranho exercício de anatomia patológica gramatical que passava por saber se as mortes eram de (provocadas pela) COVID-19 ou com (associadas à) COVID-19, isto é, se as pessoas morriam por causa da COVID-19 ou por outra causa mas estando, eventualmente por mero acaso, infectadas pelo Sars-Cov-2. Ainda estou para saber se algum destes relativistas teve a coragem de esticar a coisa até ao limite e declarar que a COVID-19 não mata quase ninguém pois a maioria terá morrido de uma doença degenerativa a que chamamos velhice... Este exercício de profundo mau gosto foi também do que de mais faccioso e ignorante se fez nos meses de Março e Abril. Se os relativistas tivessem usado o mesmo critério para esmiuçar as mortes de gripe e com gripe, é bem possível que a coisa deixasse de funcionar a favor deles e tivessem logo passado a outra manipulação. 

Perdeu-se o timing, mas num espírito de formação contínua creio HPS e os restantes manipuladores ainda vão a tempo de perceber que as mortes associadas à gripe não são contadas da mesma forma que as mortes associadas à COVID-19 — em rigor, HPS parece conhecer vagamente este facto, só não avaliou as consequências daí resultantes. Ele, que detesta e despreza os modelos e as estimativas, talvez não tivesse sido capaz de interiorizar que as mortes anuais por gripe que o CDC publica e as que são calculadas para o mundo inteiro não resultam da simples centralização e contagem dos registos (dos pacientes testados e/ou do excesso de mortes associado aos picos de gripe cujo período é definido pelos testes que detectam o vírus). A contagem actual de mortes por COVID-19 será revista em alta e o aumento será substancial, como substancial é a diferença entre as mortes por gripe que vão sendo registadas no momento e a estimativa final. Quão diferentes?

Between 2013-2014 and 2018-2019, the reported yearly estimated influenza deaths ranged from 23 000 to 61 000. Over the same time period, however, the number of counted influenza deaths was be 3448 and 15 620 yearly. On average, the CDC estimates of deaths attributed to influenza were nearly 6 times greater than its reported counted numbers. Conversely, COVID-19 fatalities are at present being counted and reported directly, not estimated Jama Internal Medicine

Os autores depois entusiasmam-se e levam o argumento longe demais ao fazer uma comparação directa entre os números de mortos de gripe e COVID-19 a partir do resultado dos testes respectivos, porque em 2020 o número de testes que detectam o SARS-Cov-2 é provavelmente (enfim, dependerá do país) muito superior ao número de testes que detectam o(s) vírus da gripe. Mas a sua conclusão de que o número estimado de mortos de gripe nos EUA está inflaccionado ou o número de mortos de COVID-19 está subestimando bate certo com várias notícias que dão conta da subnotificação das mortes de COVID-19, sobretudo durante a fase de crescimento exponencial de expansão desta doença. Em resumo, é preciso esperar para fazer estas comparações com um mínimo de rigor. 

A crítica à conversita da gripe podia ter sido feita a partir dos números que hoje conhecemos e não teria sobrado pedra sobre pedra da argumentação de HPS (conto fazê-lo num outro texto). Mas não quis abordar a prosa de HPS de Março e Abril sobre a gripe à luz do conhecimento actual porque aquilo é uma torre inclinada à partida, assente em fundações péssimas (do engenheiro André Dias) e erguida por um empreiteiro manhoso (o mestre HPS). Que não sobre nenhuma dúvida: aqueles textos já eram coisa de alucinado, ignorante ou aldrabão no momento em que foram escritos.

 

 

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