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Um diário trasladado

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23
Jun20

O negacionismo de Henrique Pereira dos Santos (6)


Eremita

Anti-elitismo de conspiracionismo de circunstância

Com o passar do tempo e a acumulação de evidência quanto à gravidade da COVID-19 e das medidas não-farmacológicas, inclusive as extremas, a posição de HPS passou de periclitante a indefensável. Porém, no ambiente protegido de uma eco chamber de obscurantismo, o homem persistiu na tese. Recuou um pouco, passando a "admitir" "algum" efeito das medidas e fez um deselegante outsorcing de equívocos para o pobre André Dias, mas, talvez para evitar uma ferida narcísica que lhe seria insuportável, não foi capaz de dar a sopradela de misericórdia no imenso castelo de cartas que construiu. Então, a partir de meados de Abril, a sua defesa passou a ser insistir na complexidade e na dúvida. O texto "Não sabemos", como se adivinha, é o melhor exemplo dessa estratégia. Na arte de duvidar, já se conhecia a dúvida metódica, o agnosticismo, o método científico e o teste estatístico. Na Primavera de 2020 surge a grande contributo de HPS para a civilização: a invenção da dúvida narcísica que salva a face. I (bull)shit you not. 

Duvido que HPS tenha feito algum reality check entretanto. Segundo os números oficiais, vamos chegar aos 500 000 mortos de COVID-19 no princípio de Julho. O número real só será conhecido daqui a uns meses ou anos, mas cálculos com base no excesso de mortos por comparação a outros anos nos períodos mais críticos da pandemia sugerem que o número de mortos (directa ou indirectamente resultantes da COVID-19) que teremos de acrescentar neste primeiro semestre não deve ser inferior a 130 mil. Na verdade, como esta análise deixou de fora a China, Índia e a África, e não cobre o primeiro semestre inteiro, a correcção deverá ser bem superior a 130 mil. E assim, num semestre em que o mundo se tentou proteger com medidas não-farmacológicas sem precedentes na nossa memória viva, a COVID-19 terá matado mais de 650 mil pessoas, superando o limite superior da estimativa anual de mortos por gripe mais alta. O que sucederá durante o segundo semestre é ainda uma incógnita, mas não será arriscado prever que chegaremos ao milhão de mortos (o número real, não a contagem oficial provisória) antes do fim do ano, equiparando a COVID-19 em gravidade à epidemia de gripe de 1968. Basta lembrar que, durante o primeiro semestre, só no fim de Março o número de mortos por dia ultrapassou os 3 mil e que vamos entrar no segundo semestre muito provavelmente com mais de 3 mil mortos por dia. A evolução dos números no segundo semestre será em grande parte influenciada por aquilo que vier a acontecer no Brasil (90 mil mortos previstos logo para primeiro mês*), EUA (80 mil mortos previstos para Julho, Agosto e Setembro*), México e sobretudo na Índia (um país imenso e com uma curva preocupante, apesar da aparente baixa mortalidade), bem como o ímpeto com que o Sars-Cov-2 reaparecerá no hemisfério Norte em Outubro, se a sazonalidade se confirmar. Mas há demasiadas incógnitas, como a dimensão do impacto positivo do uso da dexametasona no tratamento dos casos mais graves (menos 10-15% de mortos?), a possibilidade de a imunidade desaparecer rapidamente nas pessoas infectadas, os números verdadeiros na Rússia, China e muitos países africanos, e ainda a (in)capacidade de implementar de novo medidas não-farmacológicas invasivas, tendo em conta o desgaste psicológico na população e a necessidade de não afundar ainda mais a economia.

Perante a quantidade de pequenas e grandes aldrabices que demonstrei, para concluir o exercício a que me propus não seria preciso acrescentar mais nada, mas HPS demonstra ainda duas características muito comuns entre os negacionistas. A primeira é o desprezo pelos especialistas, um anti-elitismo que no caso dele não se enraíza no populismo, parece ser apenas um tique que decorre da sua mania das grandezas e de um equívoco. HPS dá ares de ter apreço pela liberdade de expressão e pels recusa do argumento de autoridade, atribuindo à heterodoxia na ciência  um valor acrescentado que o leva a um relaxamento o grau de exigência com que avalia as vozes heteroxas (a aceitação cega do que André Dias escreveu e disse é um exemplo extremo ). O desprezo pelos epidemiologistas e a modelação manifestou-se recorrentemente nas expressões taxativas com que HPS parecia terraplenar uma disciplina sem ter conseguido sequer convencido o leitor de ter percebido os seus fundamentos e ferramentas mais elementares. Refiro-me a passagens como "Tudo isto é conhecido da epidemiologia" e  "os resultados (a confirmarem-se) são consistentes com o que seria de esperar a partir de cem anos de conhecimento em epidemiologia, totalmente arrasados em dezenas de modelos matemáticos". Há uma dimensão involuntariamente divertida neste tom assertivo e hiperbólico de HPS. Também no seu desprezo pelos modelos há uma tensão cómica entre a notória ignorância e a assertividade. HPS faz distinções incompreensíveis entre abordagens biológicas e matemáticas, não entende o que é um modelo, não distingue entre modelos interpretativos e preditivos, não percebe que a maior parte dos modelos são calibrados a partir de dados empíricos e não conhece a história da modelação em epidemiologia, indo ao ponto de confundir as suas epifanias diárias como descobertas que a disciplina devia passar a integrar. Ele pensa que os epidemiologistas que fazem modelos não estão a par das diferenças de comportamento entre as pessoas, quando há décadas que se fazem modelos que levam em conta a heterogeneidade nas populações e a heterogeneidade geográfica (e.g., um modelo desse tipo com mais de 30 anos e outro com apenas 15 anos mas com o colorido de ser da autoria do Neil Ferguson, o infame epidemiologista que, segundo a mitologia libertária e de anti-cientismo em que HPS marinou, mandou toda a gente para casa no Reino Unido). Salvo erro, HPS só se enamorou de dois modelos: o de Sunetra Gupta, que hoje se sabe estar completamente errado nas suas previsões, sobretudo as mais extremas, pois a 24 de Março sugeria que metade da população do Reino Unido poderia estar já infectada antes de 24 de Março, quando hoje se sabe que os seropositivos em Londres, quase dois meses depois, eram apenas 17%, e o de Gabriela Gomes, em que é sugerido que o limiar para a imunidade de grupo pode estar nos 10-15%, sem que haja qualquer evidência empírica que o suporte. Lamento não ter o talento para dar a HPS a Hitch slap final que ele merece e só me resta imaginar que um dia, em plena refeição com a família ou amigos num qualquer restaurante, HPS ouvirá um  "how dare you?" sonoro de algum epidemiologista alcoolizado, mas suspeito que as suas conclusões sejam demasiado absurdas e o Corta-Fitas não tenha a projecção necessária para que algum epidemiologista saiba quem é HPS e o pudesse levar a sério.

A segunda característica é a a inclinação para as teorias da conspiração, que no caso de HPS pode ser meramente táctica. O totalitarismo da China levou ao aparecimento de três teorias: 1) que a China teve um comportamento criminoso na gestão inicial da pandemia,  tanto internamente como no atraso a informar a OMS, o que hoje parece estar provado; 2) que o Sars-Cov-2 escapou de um laboratório chinês de biotecnologia, de momento uma puríssima teoria da conspiração que continua a animar muitos círculos, mas uma questão que — formalmente — podemos manter no ar; 3) que o número de mortos na China foi muito superior ao divulgado, uma tese cuja sensatez está inversamente correlacionada com a dimensão dos palpites. A posição de HPS sobre esta terceira teoria pode ter contornos de teoria da conspiração, mas não há uma certeza absoluta porque um bullshitter como ele discute com manha e a sua alusão à falta de fiabilidade dos dados da China pode ter sido apenas uma forma de escapar a uma pergunta incómoda. Com efeito, pedi-lhe inúmeras vezes que desenvolvesse a sua tese, mas uma resposta esclarecedora nunca veio. A palavra a HPS:

O que parece certo é que a partir da manobra de propaganda da ditadura chinesa - derrotámos gloriosamente o vírus com a nossa acção firme e decidida -, com a conivência do silêncio da OMS (que deveria ter dito que essa é uma hipótese, embora pouco provável, e que o conhecimento de cem anos de epidemiologia permite admitir que a curva epidemiológica tenha seguido o seu curso natural, tendo sido o vírus a derrotar-se a si próprio...

E ainda esta passagem, breve e bem recente, que foi tudo o que consegui dele:

Se confia na informação sobre a China a única coisa que tenho para lhe dar são os meus pêsames pela morte do seu cérebro.

Não se percebe mesmo se o pensamento de HPS sobre a China se alterou. De início, a sua tese era a da costumeira evolução natural do vírus que absorveu de André Dias. A epidemia iniciou-se em Wuhan em pleno festival da Primavera, uma altura de grande circulação da população na China. Sendo o vírus caracterizado por um R acima de 2 e uma mortalidade de 0,64% (0,50-0,78%) (há outras estimativas com uma dispersão bem superior), pensar que, num grande centro urbano, com uma  população sem qualquer imunidade inicial e em movimento para diferentes partes do país, o vírus  se derrota a si próprio em três meses após ter provocado menos de 5 mil mortos é uma tese incompatível com os tais "cem anos de conhecimento em epidemiologia" e esmagada pela evidência mais recente. Não há qualquer dúvida sobre o assunto. Saberá HPS qual é a percentagem de seropositivos em Wuhan? Está entre os 3,2 e os 3,8%, dependendo do grupo analisado. No resto da China, a percentagem é menor, como seria de esperar. A ideia de que 4% de seropositivos no epicentro de uma epidemia chegam para a parar e estancar a sua propagação para outras áreas da China é tão descabelada que a HPS só resta mesmo a tese de que toda a informação que vem da China faz parte de uma enorme maquinação, inclusive os estudos recentes sobre a seropositividade na população. Se HPS está preparado para assumir plenamente esta linha de argumentação, então passo-lhe o pincel e a paleta para ser ele a dar os últimos retoques no seu retrato de negacionista. Mas as seguintes perguntas são retóricas porque HPS deve ter amuado ao segundo parágrafo deste texto e nunca responderá. Quantos mortos estará a China a esconder? Em vez dos 4 638 oficiais, façamos um exercício. Terão morrido 10 vezes mais, ou seja, 46 380? Há quem defenda esta ideia com base em alguma informação interessante, talvez até credível. Se foi o caso, no ranking de mortos por milhão de habitantes a China saltaria para a posição 42ª, entre a Polónia e a Bielorrússia. E daí? É ainda uma posição que deixa a China na posição dos países que lidaram excepcionalmente bem com o vírus. Como se explicaria então que o vírus se tivesse derrotado a si próprio mais depressa numa China apanhada de surpresa do que nos EUA? HPS adoptará talvez aquela que foi a sua derradeira arma: a análise multivariada paralisante e geradora de dúvida. Há quem faça da complexidade um objecto de estudo, mas, como já frisei, HPS usa a complexidade para forjar uma moratória que adie conclusões para quando já ninguém se lembrar das parvoíces que andou a escrever durante mais de três meses e ele possa ter uma saída airosa. Dirá HPS que os talvez os chineses tenham uma genética que os protege, uma poluição atmosférica que lhes deu resistências ainda por estudar, uma série de zoonoses que ninguém topou e os equipou antes de 2020 com uma imunidade cruzada que os testes serológicos não detectam mas é capaz de neutralizar o Sars-Cov-2. Ou então subirá a parada da conspiração: talvez os chineses escondam ainda mais mortos. Terão sido 100 vezes mais, ou seja, 463 800? Aqui HPS começará a ponderar se lhe interessa seguir com este número, que inflaciona o número de mortos no mundo já para perto de um milhão no primeiro semestre de 2020 e complica ainda mais a comparação com a gripe (friso que estamos a pensar segundo a realidade paralela de HPS em que a comparação directa com os números da gripe é pertinente porque as medidas não-farmacológicas sem precedentes contam pouco). Suponhamos que HPS sacrifica de vez a comparação com a gripe para defender a sua tese central: 463 800 chineses mortos!  É um número que acaba com a tese de que a China pôs em prática medidas não-farmacológicas de uma eficácia excepcional. Mas será que esta suposição faz algum sentido? Seria a China capaz de esconder mais de 400 000 mil mortos? Teria a China andado a oferecer ajuda técnica e ventiladores em Março aos pobres dos italianos e espanhóis quando ainda morriam chineses de COVID-19 só para fingir que estava tudo controlado? Não estaríamos já em pleno delírio xenófobo? Seria preciso desmentir uma série de observadores da OMS, alinhar numa tese trumpista elevada ao quadrado de que a China corrompeu toda a estrutura da OMS e passar um atestado de menoridade à intelligence norte-americana, tão sedenta de anunciar podres chineses, por ter sido incapaz de recolher provas definitivas da tragédia chinesa. Mas ouçam o relato de um afável médico canadiano (observador da OMS) sobre a sua visita à China: parece-vos que foi corrompido pelos Chineses? Com o quê? Dinheiro? Promessas de um cargo apetecível na OMS? Concubinas sublimes superiormente treinadas nas artes da cama? O meu cérebro estará moribundo, mas não sei mesmo como HPS conseguirá explicar os dados da China sem ter de abandonar as suas teses e, em simultâneo, nos conseguir convencer de que o seu cérebro não está sob o efeito de substâncias alucinogénicas ou refém do seu imenso ego, como um adolescente franzino subjugado por um lutador de sumo.

* Estas estimativas parecem-me exageradas tendo em conta a progressão da COVID-19 nas últimas semanas nos EUA e Brasil, mas não sou epidemiologista e é verdade que os números oficiais do Brasil despertam as maiores suspeitas. 

 

 

 

 

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