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OURIQ

Um diário trasladado

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22
Jul18

O estado das artes


Eremita

Quando hoje em dia se esmiúçam as minúsculas diferenças entre a estética da presença, a estética neo-realista, a estética de lobos-solitários como Aquilino, Agustina e Vergílio Ferreira, e a estética da “política do espirito”, menoriza-se o quanto na verdade concordavam em demasiado acerca do que deveria ser uma “literatura portuguesa”, nomeadamente ruralista, realista, formalmente conservadora, vetada ao Modernismo, diferindo uns dos outros apenas em mais ou menos materialismo, mais ou menos pitoresco, casticismo e vernaculidade, mais ou menos aderência à propaganda dum “povo” imutável na sua “essência” desde os princípios do tempo. A metrópole era um espaço indigno da ficção. A cidade, a capital, foi o centro da ficção modernista: sem a Lisboa de Pessoa, a Paris de Proust, a São Petersburgo de Biely, a Berlim de Döblin, a Londres de Woolf, a Nova Iorque de John dos Passos, a Dublin de Joyce, não haveria Modernismo. Bem, Lisboa evaporou-se aí por volta de 1918. Ainda que Gaspar Simões fosse o autor de Pântano, romance lisboeta de recorte eciano, era-o também de Uma História de Província. Aliás, “histórias de província” resume sucintamente a melhor ficção anterior aos anos 60. Régio tinha Portalegre, Aquilino a Beira, Agustina o Minho, Torga a Montanha, Ferreira Évora, Tomaz de Figueiredo Arcos de Valdevez, e os neo-realistas qualquer canto de Portugal aonde ainda não tivessem chegado a electricidade e estradas asfaltadas. Quem hoje em dia situa a sua ficção nos bairros lisboetas nem se dá conta de como isso foi um direito há pouco adquirido. 

 

(...)

 

Frases curtas. Simples. Poucas orações coordenadas. Conjunções adversativas, népias. Palavras comuns. Léxico reduzido. Um tom neutro. Nada bombástico. Maria Judite não esteve à margem da batalha sem fim do seu tempo contra o vistoso, o “fazer estilo”, para tornar a linguagem literária um instrumento tão insípido que ninguém consegue reter uma única frase na memória por mais do que um dia, o que é sem dúvida o legado mais duradouro desta arte viva. Tão transparente é que é preciso redobrar a atenção para não a decretar medíocre. Pois nem ela nem os seus contemporâneos podiam gostar de presencistas e neo-realistas, mas subscreveram de bom grado as injunções de ambos contra o barroquismo, o formalismo, a pirotecnia e preconceitos afins. A verdadeira literatura é natural, é simples, é jornalística, e como em 1959 não se traduzia senão franceses, que já tinham ganhado a batalha pelo anti-retórico no século XVII, e como ainda ninguém lia por cá estilistas como Anthony Burgess e Vladimir Nabokov, nem os latino-americanos neobarrocos, nem nunca se dariam ao trabalho de descobrir Paul West e Carlo Emilio Gadda, nem sequer editariam o Grande Sertão: Veredas, e sabe-se lá como é que se lembraram de traduzir O Quarteto de Alexandria, e só com muito esforço toleravam Raymond Queneau...

 

(...)

 

É isto a arte viva de Maria Judite de Carvalho, que, para melhor e para pior, antecipa vários aspectos da ficção contemporânea. Uma literatura feita sobre os escombros dos sistemas de valores que davam sentido à vida. Uma literatura urbana e despolitizada, revalorizadora do quotidiano burguês e introdutora dum novo tipo de personagem desapropriado de qualquer possibilidade de esperança. Em que predomina uma sensibilidade a quem a simpatia pela humanidade não a impede de a condenar vezes sem conta e com justiça. Pouco imaginativa. Humor, muito pouco; seriedade, demasiada. Toda conteúdo e nenhum estilo, sem fazer a menor concessão à ideia antiquada de que a prosa deve ser bela. A beleza, claro, foi só mais outro dos valores desses sistemas que entretanto colapsaram. Os escritores da actualidade encontrarão aqui as suas humildes origens. Se parece que Tanta Gente, Mariana foi escrito a semana passada, bem, é porque foi; é que entre 1959 e 2018 o tempo literário se conta doutra maneira. Homem-de-Livro

O conhecimento intimida. Quando o blog Homem-de-Livro foi comentado com entusiasmo por alguns, logo se levantaram umas vozes criticando o seu barroquismo, a exibição de cultura, a arrogância de o autor escrever também - imagine-se! - em inglês. A verdade é que não existe hoje na imprensa quem escreva sobre livros como os bloggers do Homem-de-Livro e Homem à Janela. A explicação não se resume apenas à crise que o jornalismo atravessa, nem à impossibilidade de publicar prosa longa nos jornais. O Observador vingou, é digital (sem limitações de espaço) e tem da melhor crítica literária que podemos hoje ler na imprensa, mas o registo é diferente, sendo evidente a pressa em despachar prosa sobre a novidade literária e o cuidado em ajustar o tom ao nível médio do leitor, que é baixíssimo. Não encontrarão na imprensa - ou então surpreendam-me - um texto sobre ou a pretexto de Maria Judite de Carvalho mais informativo, rico na forma e cuidado na estrutura, apesar de a prosa da escritora ter sido reeditada recentemente. E é sintomático da perda de interesse na literatura e do nível a que se chegou não haver, ao fim de três semanas, um único comentário a este texto magnífico sobre Maria Judite de Carvalho. O conhecimento intimida, mas há limites. Seremos um país falhado se não houver umas dezenas de pessoas fora dos círculos académicos capazes de entabular conversa com o Homem-de-Livro. 

 

 

 

 

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