O desejo mimético e as macaquices de imitação
Eremita
(...) A nossa conceção de justiça, por exemplo, depende da existência de Deus. Não há direito natural (“direitos humanos”) sem Deus. Não vale a pena abanarem a cabeça, porque um raciocínio cem por cento secularizado não nos garante os direitos humanos. Sem transcendência, isto é, sem uma dimensão independente da imanência física, a soberania da ciência, da economia e do poder político, torna-se impossível contemplarmos algo como o amor, na nossa vida privada, ou a justiça, na nossa vida coletiva. A ideia de “injustiça” é uma criação da Bíblia. Henrique Raposo, Expresso (via Corta-fitas)
Talvez haja uma dúvida irredutível nas discussões sobre a existência de Deus e o agnosticismo seja a única posição formalmente lógica a adoptar. Muitos argumentos, nomeadamente aqueles sobre a origem do universo, escapam ao senso comum e ao bom senso, por mais que os físicos se esforcem. Porém, houve um argumento que a ciência descartou nos últimos anos. Esse argumento marcou durante séculos presença nestes debates e é natural que, por alguma inércia cognitiva, continue a ser copiado e usado. Mas depois da projecção mediática que o primatólogo Frans de Waal teve nas últimas duas décadas, ver esse argumento na imprensa de refêrencia é algo chocante. Afirmar e propagar que a ideia de "injustiça" é uma criação da Bíblia revela uma ignorância e uma pulsão evangelizadora preocupantes. Nem vou perder tempo com uma leitura literal da passagem destacada (é evidente que outros textos anteriores à Bíblia transmitem a ideia de injustiça). O sentimento de injustiça está presente entre diversos primatas. Vou repetir: o sentimento de injustiça está presente entre diversos primatas, não é exclusivo da nossa espécie. Aliás, não é sequer exclusivo dos primatas, mas adoptemos os baby steps para não sobrecarregar o SNS com uma vaga de católicos empedernidos em estado de choque.
Para quem não gosta de ler, aqui fica a parte central de uma comunicação de Frans de Waal que mostra uma experiência fulcral para consolidar a tese de que a ideia de injustiça precede o nascimento da nossa espécie. A estrela é um macaco-prego-de-cara-branca que não recebeu o pagamento a que julgava ter direito e dá capote a Arménio Carlos na expressão da sua sensação de injustiça. Naturalmente, sobra a possibilidade de horas antes este macaco ter sido catequizado usando uma tradução da Bíblia para linguagem gestual simplificada, pormenor que os autores do estudo talvez tenham ocultado por serem agentes do marxismo cultural. É tudo uma questão de fé, certo?