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10
Jan18

#MeToo: Deneuve pode esperar


Eremita

As campanhas americanas de moralização dos comportamentos – daqueles que revelam desigualdades e opressões – tendem muitas vezes a resvalar para o moralismo e a caça às bruxas em nome da liberdade? Sim. As reações francesas aos movimentos igualitários, na forma como crescem em contextos anglo-saxónicos e daí se disseminam, tendem muitas vezes a resvalar para o reacionarismo e o tradicionalismo em nome da liberdade? Sim.

É este curioso duplo movimento que se deteta nalgumas consequências do #MeToo e em reações como a da carta subscrita por Catherine Deneuve [e 99 outras mulheres («Nous défendons une liberté d’importuner, indispensable à la liberté sexuelle»)], deste lado do grande charco.

(...)

Em ambos os lados do charco – dos vários charcos, geográficos ou ideológicos – é fundamental afirmar que o assédio (nem falo do abuso) sucede quando uma relação de poder está subjacente (e dela dependente dinheiro, trabalho, reconhecimento, autonomia, etc.), e o mútuo consentimento não ocorre. Nada a ver com sedução. A maioria das e dos apoiantes do #MeToo sabe isso e defende isso – assim como as signatárias da carta francesa.

Uma defesa do meio termo? Pode parecer, mas não é. Porque, “ao fim do dia”, o #MeToo rompe mais com a hegemonia patriarcal estabelecida (e a sua rede de sustentação feita de silêncios impostos e auto-impostos), do que a “Carta Deneuve”; e o perigo de reprodução do status quo que comporta a posição desta é mais perigoso do que os riscos de puritanismo daquele.

O feminismo, nos seus diferentes matizes, é a exigência de igualdade de direitos, reconhecimento e oportunidades entre os géneros – e, na minha perceção, deve ser mesmo um questionamento do género em si como um dispositivo de poder. Não é, obviamente, a inversão da assimetria. Mas não pode olhar para o lado e fingir que o patriarcado já não existe. A “Carta Deneuve”, apesar de algumas preocupações legítimas (ninguém quer o resvalar para uma injusta caça aos bruxos), está demasiado próxima das demasiado fáceis indignações com o politicamente correto: não sabe estabelecer prioridades.

Estratégica e politicamente, acaba fazendo o jogo da violência de género sem se aperceber. Miguel Vale de Almeida

 

É sempre útil ler o Miguel Vale de Almeida, sobretudo nestes temas. Concordo com o que ele escreve; a reacção pode esperar. Até quando? Até ao primeiro caso em que um homem inocente seja linchado por vivermos um período de ajustes de contas. O único aspecto positivo do movimento de reacção que a carta das francesas representa é ter sido escrito por mulheres. Reparemos: decorre um debate público que suscita grande interesse independentemente do sexo e em que os dois pólos da discussão são ocupados por mulheres em exclusivo. Isto já sucedia com certas polémicas entre feministas radicais e feministas moderadas, mas não com a dimensão mediática presente, nem com o entusiasmo das conversas que se desejam e pressentem consequentes, nem - na ressaca pós-weinsteiniana - com um diferencial de autoridade moral tão grande entre mulheres e homens, que os condena a apenas ouvir e nada opinar. Embora seja certo que este estado de desgraça masculina não durará para sempre, a exclusão dos homens da discussão, qualquer que seja o conteúdo da carta das francesas, rompe com a "hegemonia patriarcal estabelecida" e deve ser assinalada. 

 

 

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