Meritocracia histérica
Eremita
Ou o objectivo Panenka
A única vaca sagrada que parece ter o futuro assegurado é a meritocracia, não no sentido de caminharmos inexoravelmente para uma sociedade cada vez mais meritocrática, apenas na medida em que não podemos criticar a meritocracia sem que caia sobre nós a suspeita do ressabiamento. Para esta ausência de discussão também conta - na intimidade - a dificuldade em se admitir a falta de mérito e - na esfera pública - a dificuldade em se admitir que somos diferentes à nascença, seja qual for a qualidade do berço. Daí que se fale muito mais frequentemente nas vítimas da mundialização do que nas vítimas da meritocracia, apesar de estes dois grupos se equivalerem em grande parte. Porém, se ninguém nega que a democracia, inventada há mais de 2000 mil anos, pode sempre ser melhorada, não estará também a meritocracia sujeita a afinações? Naturalmente, estes pensamentos invadiram-me quando a minha carreira começava a ruir. Mas - insisto - o contexto e a causa próxima são irrelevantes para avaliarmos a pertinência da reflexão. Até um ressabiado merece o benefício da dúvida e pode estar cheio de razão na tese geral que apresenta, independentemente de sabermos se a tese explica o seu falhanço concreto.
Uma carreira começa a ruir um pouco como as casas - daí a escolha do verbo. Há uma primeira hipótese perdida (a primeira racha) que espoleta um ciclo vicioso (as infiltrações) e rapidamente a situação deixa de ter remédio. Com o abandono da carreira, tudo desaparece então a uma velocidade surpreendente, tal como a casa abandonada que, parecendo ressentir-se da falta de atenção, tende a acelerar a sua ruína de um modo que faz um aldrabão do mais consciencioso e capaz avaliador resistência e durabilidade dos materiais.
Continua