Gentil Martins: ignorar é o melhor remédio
Eremita
Sonia and Tracy, Robert Mapplethorpe, 1988
Tenho dúvidas de que um inquérito da Ordem dos Médicos ao Dr. Gentil Martins beneficie a sociedade. Temo que a principal consequência seja fazer do médico um paladino da liberdade de expressão (1, 2). João Semedo, do BE, lembrou a rapidez com que a Ordem reagiu a afirmações do Dr. Manuel Pinto Coelho sobre os efeitos de um medicamento, mas esse foi um caso em que basta confrontar o que foi dito com a evidência científica. As afirmações de Gentil Martins sobre homossexualidade, que o médico equiparou ao sadomasoquismo e à tendência para a automutilação, são de uma violência e insensibilidade muito pouco cristã para um católico praticante, e também irresponsáveis, tendo em conta o prestígio do cirurgião pediatra, mas quem as tentar rebater invocando a evidência científica descobrirá que se enfiou numa armadilha.
Segundo a psiquiatria moderna, as afirmações de Gentil Martins estão desactualizadas há 44 anos, tomando por marco 1973, ano em que os psiquiatras norte-americanos deixaram de considerar a homossexualidade uma patologia. A classificação da homossexualidade como doença só trouxe sofrimento ao mundo, das terapias traumáticas e inúteis ao reforço de um estigma social ancestral. Quando se passou a considerar a homossexualidade apenas como uma das várias orientações sexuais possíveis de um espectro natural, aumentou o bem-estar dos homossexuais sem qualquer prejuízo para os restantes cidadãos. Esta evidência a posteriori legitima largamente que se tivesse retirado a homossexualidade da lista das anomalias psíquicas, só que não é uma evidência científica. E se aprofundarmos a análise, a única conclusão que os defensores retirariam da descrição histórica de como a homossexualidade deixou de ser uma doença é que a decisão de 1973 foi influenciada pelos grupos activistas de defesa dos homossexuais (pois foi e ainda bem). Seria pois insensato partir para uma discussão de contornos epistemológicos sobre o que é a evidência científica e como se gera consenso em ciência, tendo em conta o nível do preconceito, os argumentos primários com que a posição do médico está a ser defendida nas redes sociais, que parecem confundir direito natural com direito inspirado na natureza, e um desconversar muito característico de uma pose de enfado, neste caso centrado na definição estrita da palavra "anomalia" enquanto desvio à norma (1, 2), que não se entende pois é evidente que Gentil Martins usou a palavra como sinónimo de patologia. Enfim, esta é uma conversa demasiado importante para ser iniciada por Gentil Martins ou o semanário Expresso, que o foi entrevistar sabendo perfeitamente a polémica estéril que iria gerar a custo zero, óptima para o tráfego online e a tiragem do jornal; enviar um repórter à Tchechénia para cobrir as perseguições aos homossexuais seria muito menos rentável.
Após o desaparecimento do Dr. Daniel Serrão, aos 87 anos o Dr. Gentil Martins é hoje o último médico de prestígio capaz de fazer afirmações públicas grosseiras sobre a homossexualidade e de se mostrar contra o aborto mesmo no caso de violação. Não percamos tempo nem invoquemos a ciência para rebater as suas afirmações e as dos parasitas do politicamente incorrecto. O único ensinamento da ciência relevante para esta polémica foi enunciado pelo físico Max Planck da seguinte forma: "a ciência progride um funeral de cada vez". A sociedade também.
Nelson Garrido