Feio, porco e mau
Eremita
O Ouriquense esteve parado porque andei a fazer pela vida. Precisei de ganhar dinheiro para sustentar a família e estive dois anos a pensar em como pagar as dívidas que fui contraindo para salvar alguns projectos profissionais e reconstruir o monte. Confirmei neste período uma impressão que contraria o lugar-comum de que os pobres são mais íntegros e nobres do que os ricos. Admitamos, para não complicar, que não há diferenças de personalidade entre pobres e ricos. A diferença resultará exclusivamente da pressão que a falta de dinheiro exerce sobre os pobres. Levada ao extremo, essa pressão é redentora; nenhum pobre pode ser criticado por roubar para dar de comer aos filhos. Mas os extremos são raros, o que traz o fardo da decisão. Dei comigo a ponderar se me sentiria bem com uma pontual fuga aos impostos e fui assaltado por fantasias de mortes que me dariam uma herança. Estas fantasias trouxeram-me grande desconforto, desilusão, uma profunda tristeza, e a única forma de as tolerar foi condenar ao ostracismo a voz que as trouxe, como se fosse de um agente infiltrado que urgia expulsar. Mas terá sido também para fugir a este quadro mental de decadência moral que consegui reunir forças para me reerguer e multiplicar em actividades que, aos poucos, me estão a fazer sair do buraco. É o que desejo para as minhas filhas: que estejam sempre num lugar em que a maldade não se manifesta. Esta dura verdade não se aprende a ler o Crime e Castigo, por muitos que sejam os ensaios que depois façamos sobre Raskólnikov.