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OURIQ

Um diário trasladado

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19
Abr17

Fátima e a pós-mentira


Eremita

 

O único facto central é que a Senhora veio mesmo a Fátima.

João César das Neves

 

Por estar tão enfraquecida pela crise de vocações, a diminuição do número de católicos praticantes, os escândalos de pedofilia e as duas derrotas políticas pesadas que foram a despenalização da interrupção voluntária de gravidez e a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a Igreja Católica Apostólica Romana portuguesa vê na comemoração dos cem anos das aparições de Fátima uma oportunidade raríssima e oportuna para celebrar com orgulho o seu último grande sucesso de propaganda e manifestação de poder. A procissão ainda vai no adro e a apoteose será só em Maio, mas os sinais da consolidação dessa vitória são evidentes. Não me refiro ao júbilo natural de crentes, mas a textos e testemunhos de gente que faz dois exercícios em público que só devemos experimentar mesmo no segredo do lar, a saber: conciliar Fátima com a razão e respeitar o culto sem infantilizar o povo. Os motivos que levam uma pessoa a publicitar tais contorcionismos cognitivos são variados, indo da necessidade de exteriorizar um conflito interno genuíno ou de mostrar empatia por pessoas próximas que acreditam nos milagres de Fátima ao mero desejo de aparecer ou fazer negócio. Basta ler os títulos de trabalhos de jornalismo de investigação recentes, como "Milagre ou Construção?" e "Milagre, Ilusão ou Fraude?", em que a presença da conjunção "ou" denuncia uma falsa equivalência entre as hipóteses que se confrontam, como se a ocorrência de um milagre fosse um fenómeno a que possamos atribuir uma probabilidade diferente de zero. Conclui-se que o "jornalismo de investigação" não sabe respeitar Fátima sem desrespeitar a razão. Também entre os colunistas vemos sinais do mesmo viés interpretativo. No Expresso, Maria Filomena Mónica mencionou o ateísta Richard Dawkins a despropósito ou então para criar uma dicotomia que lhe permitisse "respeitar" Fátima e escapar à acusação de que infantiliza povo, o padre "progressista" Anselmo Borges negou categoricamente as aparições de Fátima, mas sem tirar nenhuma consequência, e o extraordinário Henrique Raposo não sente Fátima, mas, com um fervor de católico recém-convertido, vê no culto mariano uma prova do feminismo do catolicismo e uma oportunidade para ele evangelizar os seus familiares que vão a Fátima e ainda não lêem a Bíblia. Além dos artigos na imprensa, também as declarações de amor a Fátima que a Rádio Renascença e o Santuário de Fátima andam a produzir são reveladoras. Sem negar que o já muito divulgado vídeo com as declarações de Zita Seabra sobre o Comunismo e Fátima é picaresco e perfeito para a galhofa nas redes sociais, volto a frisar que os testemunhos mais bizarros e irritantes não são de católicos mas de gente da sociedade civil que, sem sentir o fervor da fé, "respeita" Fátima. Por exemplo, Luís Miguel Sintra, antes detestava e agora comove-se com Fátima; Lídia Jorge não resolve a questão de saber se aquele é um lugar de "humanidade" ou de "transcendência", mas tem um "respeito profundo por essa gente que se encontra"; e Catarina Furtado, a adorável Catarina, nunca refere a religião, mas descreve as lágrimas dos figurantes na cena da aparição que gravou e, plena de deformação profissional, a apresentadora remata a intervenção com um "sugiro Fátima!"*, como quem recomenda um fim-de-semana no Palácio Hotel do Buçaco. Esta laicização de Fátima como expressão dos bons sentimentos dá náusea. 

 

Meus caros, ou se está convicta e plenamente com Fátima ou totalmente contra Fátima. Não há compromisso possível entre o respeito pela razão e o respeito por Fátima, nem é possível respeitar a crendice popular sem infantilizar o indivíduo. É por isso que o beato João César das Neves, em regra um homem com um discurso anacrónico e até alucinado no que diz respeito aos costumes, tem o testemunho mais coerente e decente de todos os que ouvi. Ele acredita nas aparições e, naturalmente, celebra Fátima. São os contributos daqueles que não sentem a fé de Fátima mas "respeitam" o povo que estão a mais. Não é a vossa festa. Por isso, deixem-se de bons sentimentos, pois só contribuem para a consolidação de uma patranha. É alarmente perceber que, no ano em que se comemora o centenário das aparições de Fátima, duvidar ou não dos alegados milagres passou a ser irrelevante, porque o mais importante é "respeitar" Fátima. Fátima como manifestação da crença popular. Fátima como elo de ligação entre as gerações. Fátima como gateway drug para se chegar à palavra do Senhor. Fátima como pretexto para escrever Antropologia, Sociologia e História que até vende livros para o grande público. Fátima como exemplo do sucesso empresarial da Igreja. Fátima como símbolo da nação. Fátima a mostrar que a descentralização é possível. Fátima como trunfo da marca "Portugal". Etc. Dizem-nos que o mundo vive na pós-verdade, mas entre nós estamos a inaugurar a era da pós-mentira. Porque Fátima é hoje uma construção demasiado grande para ser desmantelada. 

 

Continua. Falta pôr links e acrescentar uns parágrafos sobre o texto de Raposo na última edição do Expresso, mas a horta chama por mim. 

* Foi um comentador de um post no Aspirina B quem primeiro reparou na expressão de Catarina Furtado. 

 

 

 

 

 

 

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