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OURIQ

Um diário trasladado

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08
Set18

Erros de paralaxe


Vasco M. Barreto

O Google faz hoje vinte anos. Graças a ele, a vida dos povos mudou mais que nos cem anos precedentes. Ter nascido antes ou depois do aparecimento do Google faz toda a diferença. Sou do tempo em que o Google Earth e o Google Maps eram coisa de ficção científica. E quem diz esses diz o Gmail e o sistema Android e o YouTube. As nossas vidas nunca mais foram as mesmas. Eduardo Pitta

 

A hipérbole, como qualquer figura de estilo, cumpre uma função. Mas a hipérbole, por definição, é particularmente sensível  ao grau. Abaixo de um certo limiar de exagero, não chega a ser hipérbole; acima de um tecto de exagero, deixa de ser hipérbole e passa a ser outra coisa qualquer de contornos e função mal definidos. Pitta é demasiado rigoroso para não mencionar factos e todas as facetas do Google que refere estão efectivamente associadas a este colosso empresarial, apenas se estranhando que atribua ao Google o poder transformador que geralmente se associa à internet, não a uma empresa em particular, mas é bem possível que o impacto mais imediato da internet nas nossas vidas passe há muitos anos pelo Google, mais até do que pelo Facebook ou outras redes sociais. Aceite-se. Também apreciei não ter referido outros projectos do Google mais highbrow, como o Google Books/Project Ocean ou o Google Ngram Viewer, o que teria ficado a matar na prosa de um crítico literário mas provavelmente não corresponderia a uma experiência pessoal real. Bravo. Assim, só mesmo a frase que destaquei me parece bizarra, um caso sério do efeito de paralaxe que a actualidade produz. 

 

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Afonso Costa e o conde de Penha Garcia tentando agredir-se mutuamente num duelo, em 1908. Não houve registo de duelos entre as elites em 1998. Mas segundo certa doutrina, o contraste entre 1998 e 2018 é ainda mais gritante, talvez por agora haver constantemente tweets insultuosos que correspondem à categoria de micro-agressão. 

 

1998. Lembro-me muito bem, estava no Instituto Pasteur, em Paris. Pesquisava-se então a internet usando a Altavista e o Yahoo! Eram motores de busca inferiores ao Google que apareceria em Setembro desse ano e não havia então muito que procurar, se tivermos por termo de comparação qualquer dos anos subsequentes. Mas em 1998 já se fazia muito do que se viria a fazer depois, com excepção das redes sociais, cujas características principais e impacto na vida pessoal os antigos fóruns de discussão nunca chegaram a antecipar. Curiosamente, o Google falhou no mercado das redes sociais, pois a sua rede Google+, que lançou em 2011, é hoje uma espécie de Holandês Voador que quase ninguém viu e onde ninguém tem vontade de entrar. Enfim, ninguém duvida que muito mudou de 1998 a 2018, mas afirmar que "a vida dos povos", por causa do Google, mudou mais em vinte anos do que entre 1898 e 1998 é um absurdo de escla astronómica. Estará Pitta a dizer que o Google teve um impacto na vida dos povos superior ao efeito combinado da televisão, que redefiniu os serões em família, dos fertiliizantes azotados inventados por Fritz Haber, que possibilitaram a "Revolução Verde" das décadas de 60 e 70, alimentando hoje metade da população mundial, da ampicilina, outros antibióticos e inúmeros progressos na medicina, que combinados com a melhoria do saneamento básico e da alimentação levaram a um aumento da esperança média de vida global impressionante, da pílula, que deu autonomia às mulheres e possibilitou uma revolução sexual? I could go on, inclusive restringindo a comparação ao universo dos costumes, das rotinas e percepção da realidade dos cidadãos e até mantendo a comparação só ao nível das classes mais privilegiadas, que não terão passado por mudanças tão drásticas como a classe média e os mais pobres: haverá alguma dúvida de que um cidadão de 1908 estranharia 1998 muito mais do que um cidadão de 1998 transportado para 2018? Já viram fotografias do princípio do século XX? Mas voltemos à vida dos povos. O que preferem: ganhar 30 anos de vida com qualidade ou ter a possibilidade de prescindir de um mapa de papel para encontrar o caminho para Carrazeda de Ansiães? Salvar um filho de uma pneumonia ou atingir o estatuto de completista do Monty Piython sem gastar um tostão, graças ao Youtube? Não pretendo diminuir a importância do enorme aumento de acesso à informação que o Google proporcionou e recomnheço que um smartphone é um objecto poderosíssimo, mas a hype associada à tecnologia e ao digital em particular tende a encurtar a memória e faz com que se perca a noção das proporções. 

 

 

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