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03
Jan20

Cabrita Reis e o pudor dos elitistas


Eremita

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Mas a possibilidade e a desejabilidade de um gosto cultivado não implicam a ilegitimidade de um gosto não cultivado, fundado num sentimento de evidência pessoal. Dito de outra maneira, não há modo de provar – sublinho: provar – a ninguém a superioridade musical da Paixão segundo Mateus ou do Tristão e Isolda sobre Marco Paulo (ou José Mário Branco). Se fundado num sentimento de evidência pessoal do prazer, a preferência por Marco Paulo (ou José Mário Branco) goza de uma impecável legitimidade. (...)

Resta que a imposição, num país pobre em que quase tudo de essencial funciona mal, de uma obra paga a 300.000 euros pelos contribuintes manifesta falta de pudor. Nada disto pretende – ou sequer podia – ser uma censura a Pedro Cabrita Reis: fez o que tinha a fazer e como o sabia fazer, e provavelmente o preço é perfeitamente razoável para o “mundo da arte”. Paulo Tunhas, Observador

Procurei um texto decente sobre a polémica obra de arte pública de Cabrita Reis. João Miguel Tavares, o nosso indignado profissional, picou o ponto e nada disse, sentindo-se nas entrelinhas  o desacerto entre a mundividência do autor e a realidade, i.e., a frustração de ter descoberto que os sócios da empresa de Cabrita Reis não são do PS, o que invalidou uma daquelas interpretações eficazes sobre corrupção que tão bem têm servido o João. Já Paulo Tunhas, que é formado no ofício de lidar com conceitos, deu-nos estética e depois ética. Mas se era para concluir que "gostos não se discutem" e alicerçar a opinião "num sentimento de evidência pessoal do prazer", para quê ler Hume? E se era para rematar com demagogia, para quê ler Platão? Saberá Tunhas quanto dinheiro recebeu cada jogador da selecção nacional pela mediana campanha no mundial de futebol na Rússia? Será que alguém deste "país pobre em que quase tudo de essencial funciona mal" se indignou na altura? Tunhas diz-nos que houve uma "manifesta falta de pudor", mas eu vi sobretudo um manifesto excesso de pudor.

 O populismo ainda não chegou ao poder mas já condiciona a opinião publicada. Não encontrei nenhuma defesa descomplexada da obra de Cabrita Reis e da decisão de a comprar vinda de quem não esteve envolvido neste episódio, muito provavelmente porque já não podemos ser elitistas. Os economistas, que não viram a crise, as redes sociais, que democratizaram a opinião, e os intelectuais de direita, traumatizados pelo marxismo cultural, deram cabo do elitismo. Quem hoje defender a existência de um serviço público de televisão que, em  detrimento das audiências, da pimbalhada e da telenovela, deixe a música erudita e os filmes da criterion collection ao alcance de todos, será imediatamente acusado de elitismo ou apelidado de "pseudo-intelectual". Há nisto uma hipocrisia ululante. Vejamos. Tanto os elitistas como os seus críticos tratam o povo com paternalismo. A diferença essencial é que os elitistas querem que o povo ganhe o mesmo — enfim, ou algum do — capital social que transmitem aos seus filhos, enquanto os críticos dos elitistas em privado tudo fazem para que os seus filhos se distingam pela aquisição de capital social e em público elogiam a boçalidade do povo, numa aparência de pai displicente e embevecido com qualquer criancice. Como se vê, a hipocrisia nem sempre está na esquerda e não é preciso ler Bourdieu para a perceber. Quem não tem um gosto cultivado, quem não sabe conjugar o verbo "haver" e dá outras gafes nas mesas bem postas, mais dificilmente singrará. Só a escola pública, a televisão pública  e o espaço público podem atenuar as assimetrias criadas pelo meio familiar. O que está em causa é a aquisição de um código. Não interessa sequer discutir se o código tem valor intrínseco ou se é mais ou menos "legítimo" do que outros códigos, pois sabemos que abre portas*.

Democracy, English and the wars over usage é um belíssimo ensaio de David Foster Wallace sobre o tema. 

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