A morte do escritor
Na semana passada, a morte do poeta Armando Silva Carvalho coincidiu com uma jornada excursionista de jornalistas da imprensa, da rádio e da televisão, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, à aldeia de Estevais, para apresentação de um livro sobre Trás-os-Montes, de José Rentes de Carvalho. (...) Comparada com a generosidade jornalística a que esta excursão étnico-literária teve direito, a morte de um dos nossos grandes poetas contemporâneos teve uma repercussão escassa, demasiadamente escassa. (...) Esta comparação subentende uma queixa, mas devo dizer que só a formulei para dizer a seguir que é uma queixa sem razão. E baseio-me nas palavras sábias de um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, que escreveu em 1988 um artigo que se chama O grau zero dos media ou porque é que todas as queixas contra a televisão são sem objecto. São sem objecto, escreveu Enzensberger, porque consistem em criticar a televisão em função do que ela não é, como se não estivesse a cumprir a sua missão. (...) Que direito temos nós de lhe atribuir uma tarefa que não está no horizonte das suas promessas? Fazer dos media o alvo de todas as críticas, a propósito de matérias das quais eles se alhearam há muito, é errar o alvo e uma perda de tempo. António Guerreiro, Público
Com alguma periodicidade, António Guerreiro oferece-nos crónicas de pendor algo niilista que valem como exercício de estilo. Pressente-se que Guerreiro não acredita verdadeiramente nas "palavras sábias" do ensaísta mencionado. A crítica pressupõe uma ideia (um modelo) daquilo que o objecto que se critica deveria ser, o que coloca vários problemas ao crítico, da irredutível subjectividade à incapacidade de reparar nos raríssimos casos em que o objecto reinventa o modelo, mas recusar uma idealização seria abdicar da crítica. Sem perder muito tempo com a comparação a José Rentes de Carvalho, um escritor que Guerreiro parece desprezar, a pergunta que fica é: a morte de Armando Silva de Carvalho teve uma repercussão escassa? Qual o termo de comparação? A morte de Mário Soares? A de algum outro poeta - estamos todos a pensar no mesmo - recentemente desaparecido? Ou resultará a expectativa de Guerreiro do pressuposto de que, entre todas as vocações que deixam legado para o grande público, é o escritor quem mais namora em vida a imortalidade, pelo que o momento da sua morte é crucial para se avaliar da intemporalidade da obra? Não sabemos, mas é raro ouvir-se o lamento pela repercussão escassa da morte de um cientista, jurista, político, etc. Não há nada mais habitual do que morrer no esquecimento, mas no caso do escritor dá direito a notícia, lamento e até indignação. Se alguém tiver dúvidas, recomendo a leitura de Pensar, do Vergílio Ferreira que pressentia já a chegada da morte.
Que repercussão nos media teve a morte de Armando Silva Carvalho? Os artigos mais longos foram os do Público, (reproduzido pela Assírio e Alvim) e do "i", que publicou um testemunho de José Manuel Vasconcelos. Houve artigos mais curtos no DN (reproduzido pelo Centro Nacional de Cultura) e na revista Sábado, bem como várias notas publicadas na imprensa ou nas páginas de instituições, a saber: a Associação de Professores de Português, o Avante!, o Círculo da Inovação, o DGLAB, o Diário de Leiria, o DGLAB, o e-Global, o Esquerda.net, o Expresso, o Instituto Camões, o Jornal da Caldas, o Jornal do Luxemburgo, o Jornal de Mafra, a Lux, o Net Madeira, o Notícias ao Minuto, o Óbidos Diário, o Observador, a Rádio Cruzeiro, a Rádio Renascença, o Redator, o Tomar TV e uma referência en passant no Macau Hoje. Houve também comunicados: da Presidência da República, do Ministro da Cultura e da APE. Os blogs que reagiram com textos originais, citações dos artigos de imprensa ou publicação de poemas do poeta foram: Arpose, Até ao Fim, Antologia do Esquecimento, O Bicho das Letras, Companhia de Inseguros, blog de Luís Soares, Da Literatura, Lvsios, O Melhor Amigo, Modo de Usar & co., No País da Magia, Olá Biblioteca, Prosimetron, Que Fazer Desta Sebenta, Ruas com História, Somos Livros, A Viagem dos Argonautas e Voar Fora da Asa. Não frequento as redes sociais para poder ser mais exaustivo neste levantamento. É pouco? É justo? Armando Silva Carvalho merecia manchetes e abertura nos telejornais? Um Ípsilon especial inteiramente dedicado à sua obra?
Portugal tem mais astrólogos do que astrónomos* e poetas do que leitores de poesia. Qual a dimensão da comunidade de verdadeiros leitores de poesia em Portugal? 5 mil? Não chegará seguramente aos 50 mil. Que importância social tem hoje a poesia? Contra mim falo, pois não o suporto, mas que outro poeta depois de Manuel Alegre marcou uma geração? Que poemas escritos depois de Cântico Negro, de José Régio, sem a boleia de uma canção, se declamam por aí de cor nas noites de boémia? Alguém duvida que, daqui a 200 anos, do século XX sobrarão Fernando Pessoa e talvez Herberto Helder, sendo todos os outros hoje tidos por relevantes remetidos para antologias colectivas, trabalhos de académicos, os alfarrabistas do futuro e as bibliotecas de meia dúzia de literatos enciclopédicos?
Nada tenho contra Armando Silva Carvalho, antes pelo contrário; li com enorme prazer e fascínio o livro (de prosa epistolar) que escreveu a meias com Maria Velho da Costa. Mas hoje, quando morre um escritor, impõem-me um peso na consciência que me leva a querer adquirir a obra completa do defunto. Esta mania de que estamos permanentemente em falta com os nossos escritores, alimentada por afinidades electivas e matreirices de livreiro, tem de acabar. Não há literalmente tempo para tanta dar atenção a tanta gente, entre mortos, vivos e obras que alguém se lembra de ressuscitar. Nem tempo, nem dinheiro, nem ansiolíticos.
A repercussão da morte do editor Vitor Silva Tavares foi escassa, pelo menos para mim. A repercussão mundial, em Espanha e em Portugal da morte de Paco de Lucia, um génio absoluto, foi escassíssima, pelo menos para mim. Mas o que significa isto? Apenas que a estima de quase todas as pessoas por estas duas criaturas excepcionais fica muito aquém da minha, o que é imensamente gratificante.
* A autoria da fórmula "mais astrólogos do que astrónomos" é, salvo erro, de Carl Sagan.