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Um diário trasladado

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26
Jun18

A literatura infantil é um logro


Eremita

Não tendo eu o fôlego sociológico de João Pedro George, duvido que consiga desmontar a fraude da literatura infantil contemporânea, mas conto discutir alguns dos livros que vou lendo às minhas filhas, sobretudo os muito maus. Livros como O Rapaz do Nariz Comprido, de Luísa Ducla Soares, exemplificam a falta de imaginação e o facilitismo que impera neste género literário. Havendo já um Pinóquio e um Cyrano, quem teria coragem de propor uma nova história com um rapaz narigudo? Só mesmo o escritor de livros infantis.

 

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O livro infantil goza de um estatuto de impunidade, sendo apenas posto em causa quando surge alguma polémica sobre a igualdade de género. Não se percebe muito bem como chegámos aqui. Enfim, talvez João Pedro George perceba, mas confesso-me perplexo. O epíteto "infantil" deveria obrigar-nos a subir a fasquia da exigência e a agravar a pena para quem não cumpre, como - de resto - sucede no Direito, mas passa-se precisamente o contrário. A literatura infantil é, como a fotografia, uma das artes (aparentemente) acessíveis; não há criatura famosa que resista à tentação de publicar o seu livro de fotografias de autor e o seu livrinho de literatura infantil. E os profissionais do género, as Ducla Soares da vida, escrevem livros infantis para alimentar um mercado que parece apostar na novidade. Esta gigantesca máquina de "produção de conteúdos", que tem por rodas dentadas editoras, livrarias, escolas e professores, corrompe autores e produz leitores maus e incultos, cheios de referências com uma relevância apenas circunstancial, assente na pura peer pressure que a máquina assegura. Sente-se na curta prosa de O Rapaz do Nariz Comprido, da repetição de fórmulas à desinspiração dos remates, a mão feita de Ducla Soares, o estilo automático, simultaneamente cansado e fácil, de quem já muito escreveu - é um fenómeno que ultrapassa a literatura infantil, pois podemos reconhecê-lo nas crónicas do Público de Miguel Esteves Cardoso, nos textos para a rádio de João Quadros, na prosa da Agustina tardia, enfim, em quem, por necessidade ou vício, precisa de parir prosa e tem muito métier mas deixou de ter ideias novas e entusiasmo. 

 

Defendo, há muitos anos, uma tese peregrina: o consumo cultural deve reger-se por uma das leis mais incompreendidas da Biologia, a da recapitulação. O que esta lei nos diz, não na sua formulação espectactular e fraudulenta de Ernst Haeckel, mas de acordo com os princípios da biologia do desenvolvimento, é que a Evolução funciona, em larga medida, por adição terminal, o que faz com que ao longo do nosso desenvolvimento passemos pelas fases do desenvolvimento embrionário das nossas espécies ancestrais. Por outras palavras, estamos presos a uma herança biológica e só nas fases mais tardias somos livres para experimentar variações que poderão ou não vingar e passar a integrar as novas etapas do desenvolvimento. Na transmissão cultural, o mesmo princípio geral devia ser regra. Contacto com produção original contemporânea? Talvez lá para os 14-15 anos. Antes disso é preciso transmitir o que a cultura apurou ao longo de milénios. Não se lê o O Rapaz do Nariz Comprido a uma criança. Damos o que o tempo provou que é bom. E se é preciso um pouco de inovação para vincular as obras à actualidade, então que se inove partindo dos elementos essenciais da cultura ocidental, das mitologias grega e romana ao cânone literátio, que são férteis em personagens e exigem um trabalho sério de adaptação para eliminar a carga libidinosa, os parricídios e demais episódios sanguinolentos. Na literatura infantil, a originalidade deveria ser um privilégio de pouquíssimos autores.

 

Meus caros, também eu invento histórias para as minhas filhas. Tenho até uma muito gira sobre uma uvinha que foge no cacho para não ser comida e vai rebolando pela casa toda de esconderijo em esconderijo, espreitando as meninas e sonhando um dia brincar com elas, o que acaba [spoiler warningpor acontecer quando se transforma numa bola (verde). Elas adoram esta história. Mas a sociedade deve reprimir o meu desejo de a transformar num livro infantil. 

 

 

 

 

 

 

 

 

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