A espada de D.(19)
Eremita
Muito se aprende dentro dos elevadores. Duas pessoas que mal se conhecem, numa viagem do rés-do-chão ao oitavo andar podem não trocar uma palavra, mas o espaço exíguo e a monotonia da paisagem que desfila vão forçá-las a uma interacção silenciosa, feita de olhares que se evitam e de uma subtil redefinição do posicionamento de ambas, como se pisassem um tabuleiro de xadrez no chão e fossem pedras de um jogo em fase derradeira. A mais aguda dessas pressões viria eu a sentir quando tinha o hábito de subir até ao quarto andar à procura de um amigo e M. aparecia no último instante, não deixando que a porta se fechasse antes de se esgueirar para dentro do elevador como se o estado sólido ganhasse por instantes a maleabilidade dos corpos líquidos; nunca ninguém voltará a entrar num elevador de forma tão graciosa. Durante o percurso eu ia corando com os pensamentos pecaminosos que aquele corpo inspirava, um corpo mais velho e irrepreensivelmente cinzelado, ao ponto de não parecer dali. Aquilo nem no cinema se via, mas ela tratava-me como uma criança. A minha vontade era que o elevador parasse e ficássemos presos, que a luz faltasse e eu então ganhasse coragem para lhe tocar. Iria depois ter ocasião de reparar que este delírio, julgado tão íntimo e pessoal, faz afinal parte do cânone das fantasias sexuais de adolescentes e outros, sendo esta mais uma daquelas constatações que causam primeiro alguma paranóia, como se alguém nos tivesse roubado o segredo, depois alguma desilusão, pois não somos tão únicos como pensáramos, e por fim algum consolo, visto percebemos que partilhamos uma perversidade universal. Como se sabe, por vezes a ordem destes estados de alma varia, podendo inclusive os três surgir ao mesmo tempo, embora haja quem experimente apenas um durante toda a sua vida.
Pouco bafejado pela sorte, na única vez que o elevador encravou a sério, a pedir a intervenção de uma equipa de bombeiros, eu estava na companhia de D., um tipo catita e o melhor jogador do prédio, mas apenas isso. Vínhamos de uma peladinha e ainda algo animados pelo jogo. O elevador encravou precisamente entre dois andares, deixando-nos com a desagradável sensação do emparedamento, pois nenhuma das janelas das portas imediatamente acima e abaixo era visível. Não entrámos em pânico e eu consegui controlar um pico de claustrofobia. Como a campainha do alarme estava avarida, limitámo-nos a lançar dois ou três gritos de alerta. A nossa situação não era dramática. Cedo deram por nós e sabíamos que em breve iríamos sair dali. A tentativa infrutífera de nos passarem algumas bolachas Maria pela frincha de uma das portas deve ser vista apenas como uma pulsão para acrescentar dramatismo ao episódio. Ainda assim, ficámos umas três horas lá dentro e, quando as circunstâncias forçam o convívio, há um pacto implícito que nos faz mais francos e, uma vez reposta a normalidade, nos obriga a um voto de silêncio sobre o que se contou. Da conversa de circunstância, D. foi lentamente escorregando para zonas mais sombrias. "E se este é o meu momento de glória? E se depois acaba?". "O quê?". Ele insistiu: "Se isto é o ponto alto da minha existência... Se vou ficar para sempre como o melhor jogador do bairro e nada mais volta a acontecer na minha vida?". "Pelo menos foste o melhor do bairro. Muitos há que..." "Mas o problema é esse, pá. E se esta fama local me suga as energias e me deixa satisfeito?". "Bem, sabes que se guardares as taças tens sempre forma de provares as glórias passadas..." "Não gozes. Não quero ter o meu momento de glória demasiado cedo, percebes?" "Pá, essas coisas não se esgotam". "Achas?" "Acho". Talvez não achasse. Já havia percebido que há uma certa tendência para reduzir uma pessoa de génio ao seu génio, tirar-lhe todas as outras dimensões e depois usar um juízo crítico implacável para a destruir, só porque nunca mais conseguiu chegar ao nível do passado ou entretanto apareceu alguém melhor. É esta a desforra dos medíocres. Mas nunca tinha pensado como a pessoa de génio se analisa e de que forma o génio lhe pode pesar. D., a partir da segunda hora era um tipo amargurado. Nunca mais esqueci aquele diálogo. Salvos pelos bombeiros, nos dias seguintes voltaríamos a jogar. D. continuou naturalmente a ser o melhor, só que eu passei a olhar para ele de outro modo e mal conseguia disfarçar o receio. Não havia forma de deixar de ver a tal espada de Dâmocles a pairar sobre D., sempre a apenas uns dedos de distância e ziguezaguendo com ele, mesmo durante os seus slaloms mais desconcertantes.