A ambição intelectual de José Sócrates
Eremita
"Seja como for, tudo o que é apenas ensaiado e fabricado acaba por soar a falso.” José Sócrates
José Sócrates é, simultaneamente, um embaraço para a democracia, um problema para a justiça e, a julgar pela citação, um caso clínico. No seu segundo livro, imodestamente intitulado O dom profano - considerações sobre carisma, o antigo primeiro-ministro tenta consolidar a sua imagem de intelectual. Há algo de meritório neste esforço do engenheiro. Primeiro foi estudar para Paris. Depois escreveu uma tese sobre a tortura. Agora disserta sobre o carisma, presume-se que na esteira de Maquiavel. Pessoas com o percurso de Sócrates geralmente vão ganhar dinheiro em cargos de gestão no sector privado quando deixam a política e têm os passatempos estereotipados de quem singrou na vida, como o golf e a vinicultura. Dos poucos que se iniciam na escrita depois dos 50 anos, a maioria dedica-se à (auto)biografia e uns quantos tentam o romance, mas não há políticos engenheiros a abraçar a filosofia política. Sócrates é singular: governou e agora faz-se filósofo. No fundo, segue Platão, apesar de ter invertido a ordem dos factores recomendada pelo grego.
É surpreendente que nenhum dos amigos de Sócrates o alerte para a figura triste que faz sempre que cita, parafraseia ou apenas refere um nome conotado com a "cultura". A sua voz muda, assumindo um tom professoral e pedante, como se não fosse ele a falar mas o modelo de figura culta perseguido por Sócrates - provavelmente alguém com a aura de João Lobo Antunes, ontem falecido, ou outro intelectual de boas famílias lisboetas ou do Porto. Como então explicar que, apesar do estilo postiço, ninguém apanhou Sócrates a dizer que leu um livro inexistente, nem a sugerir música ainda por compor por quem entretanto morreu, nem a trocar apelidos de autores que apenas partilham o nome próprio, gafes famosas de figuras do PSD. Passos Coelho, Santana Lopes e Cavaco Silva têm a ligeireza de quem sabe que não é um intelectual, nem pretende ser. Erram porque são humanos. Pelo contrário, Sócrates trabalha a sua imagem de intelectual e tem a noção de que um erro primário lhe seria fatal. Se errar, é porque foi incompetente. Assim, faz todo o sentido o eventual recurso a um escritor fantasma para assegurar um nível académico decente ao(s) livro(s) de Sócrates. A cultura, em Sócrates, pelo menos desde a célebre entrevista ao Expresso em que de definiu como um animal feroz, nunca foi a manifestação orgânica do "que ficou depois de se esquecer tudo o que foi aprendido" tão reveladora da nossa natureza, mas uma representação orientada por objectivos.
Esta tese cria um paradoxo. Que objectivos? Ainda que em tempos Sócrates tivesse pensado com a Presidência da República e concluído que precisava de um outro grau académico para limpar a licenciatura suspeita, para quê insistir com um segundo livro, agora que a sua carreira política está acabada? Para quê os comunicados ao povo com travo a conferência em que são citadas figuras da ciência política? Enfim, um homem inteligente e vaidoso como Sócrates poderá ter querido dar uma bofetada de luva branca em todos os que com ele gozaram por causa da licenciatura. Porém, o mesmo aconteceu com José Relvas, que nem por isso rumou a Oxford para estudar coisas. Sobra então a hipótese pífia de que Sócrates se representa hoje como intelectual por ter a ambição genuína de ser visto como um intelectual.