Cineclube
Eremita
O rapaz do cineclube acaba de chegar da capital. Vem triunfante. Às 13 horas pirateou o Grand Torino, no Monumental Saldanha, e ainda hoje quer organizar uma sessão, que coincidirá com a sessão das 19:45 do mesmo Monumental. A diferença de dias entre a estreia de um filme em Lisboa e em Ourique nunca foi tão pequena. Ainda há em Portugal quem tenha brio na sua actividade. O entusiasmo do rapaz é tal que acabo de me fazer sócio do seu clube e dobrei-lhe a jóia, depois de ele me prometer que vai melhorar a captação do som e eliminar digitalmente a sua respiração, por vezes demasiado presente, a lembrar o Glenn Gould. Artistas...
Temos Clint Eastwood. Depois do thriller falhado que é Mystic River, depois do díptico de efeito fácil sobre Ywo Jima, depois do pastelão competente que é Changeling, eis um filme sobre redenção que recupera a magia de Perfect World, com o qual estabelece o paralelo mais óbvio. De certa forma foi um alívio, pois o trailer fazia supor que estaríamos perante um Dirty Harry na reforma, o que teria sido aborrecido. Ainda assim, [spoiler! Retomar em "Bruno"] a última cena é uma espécie de variação do "go ahead, make my day", em que a Magnum é substituída por um isqueiro. Bruno Vieira Amaral, o melhor português a escrever de graça sobre cinema, apesar dos tiques de antropólogo, explica o resto e eu concordo com quase tudo.
O mais fascinante na noite de cineclube de ontem não foi o filme, foi mesmo o rapaz que anima estas sessões. Quando ele saltou para diante do projector, a instantes de começar o filme, passava a mensagem contra a pirataria, que de repente ficou partida entre as letras focadas na parede e as letras desfocadas na T-shirt e cara do miúdo. Foi nestas condições acidentalmente cinéfilas que ele arrancou a justificação da sua pirataria. E que emoção... Percebia-se ali uma retórica também cinéfila, retalhos de discursos épicos famosos (Citizen Kane, Braveheart, First Blood, Mr. Smith Goes to Washington, To Kill a Mockingbird, Twelve Angry Men, Scent of a Woman, entre outros). Convenceu-me. Seria capaz de o perdoar se ele tivesse matado para que o cineclube sobrevivesse. E para o Verão prometeu um drive in clandestino, se alguém se chegar à frente com uma parede caiada em lugar remoto, pois ele assegura a projecção. Pensei logo no Cotovio. Ainda há por lá uma parede a prumo. O Cotovio pode vir a ser a minha Wonderland: um monte em ruínas, povoado por galinhas, com livros em tupperwares, um plátano frondoso que confundi com um castanheiro, um poço que nunca seca, uma ribeira com peixe-rei, tiros de caça que quixotescamente interpreto como salvas de artilharia de um confronto distante entre o exército de Napoleão e outro qualquer, uma parede caiada de fresco para projectar filmes pirateados em Lisboa e um sobreiro que se destaca dos restantes, por marcar o local onde pernoitei ao relento com Tatiana ou onde atingi mortalmente Igor, whatever comes first.