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OURIQ

Um diário trasladado

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13
Mar09

Lucubração sobre a morte de Igor


Eremita

 

 

É ponto assente que Igor deve morrer. Mas é preciso que este seja um crime perfeito. Um crime perfeito tem de cumprir duas condições, a saber: 1) não pode incriminar o autor perante os outros; 2) não pode incriminar o autor perante si próprio. Cumprir a primeira condição é um problema essencialmente técnico. Cumprir a segunda condição é um problema essencialmente bicudo, para não dizer insolúvel. Como pensar em contra-medidas para apaziguar uma consciência se tal exercício é o cúmulo da premeditação de um crime? Matar Igor será, na melhor das hipóteses, um crime quase perfeito. 

 

Uma estratégia para quase cumprir a segunda condição é convencer-me de que a morte de Igor salvará Tatiana. Os sinais da infelicidade conjugal de Tatiana são, por agora, apenas sugestivos de que talvez ela apanhe do embriagado Igor. Vou todas as segundas de manhã ao Pingo Doce e invento desculpas para poder demorar o olhar em Tatiana. Busco sinais de um olho pisado, camuflado a maquilhagem, mas até agora só me deparei com o rosto perfeito e a pele imaculada de Tatiana, sem rímel, sem base, sem sequer um risco, sem um beliscão. Fico a pensar que talvez Igor a açoite no lombo com a lista telefónica da região sul  para não deixar marcas visíveis, mas é especulação minha. Porém, não desisto. Volto todas as segundas e no fundo penso: "Make my monday, Igor. Go ahead, punk, make my monday".

 

Uma vez identificada em Tatiana uma marca de violência doméstica, é preciso definir em que moldes decorrerá o crime. Como me conheço, sei que uma justificação para o acto não é suficiente. O próprio acto precisa de uma dimensão redentora. Está excluída a morte por envenenamento, que é coisa de mulheres. Está excluída a morte pelas costas, que é coisa de cobardes. O ideal seria desafiar Igor para um duelo, mas aqui ficaria dependente da vontade deste e, muito sinceramente, não imagino Igor a alinhar nisto, a menos que esteja embriagado - o que seria inadmissível porque faria o duelo injusto. É mesmo possível que um crime digno exija alguma dignidade não só do criminoso mas também da vítima. Em todo o caso, não encontro outra saída. Desafiarei pois Igor para um duelo com armas de fogo. Não pode ser uma simples luta com as mãos nuas, pois Igor (mais de 95 Kg e por volta 1.93 m) daria cabo de mim  (76  Kg, 1.81 m) - é ténue a fronteira entre o crime quase perfeito premeditado e um acidental suicídio auxiliado. 

 

Resta saber se sou capaz de seguir um plano que implica coragem física, já que os meus actos de coragem física tendem a ser fruto de impulsos. Mas admitindo que serei capaz de o fazer, é possível que o treino de tiro aos comprimidos se transforme num imprevisível tirocínio para a vida, passo o trocadilho. Acerto já 60% das vezes num comprimido de 75 mg a 15 metros. Ora, para Igor ficar reduzido à dimensão de um comprimido de 75 mg teria de estar fora do alcance de tiro e isso não seria sério. É claro que agora não poderei mais treinar. Uma coisa é beneficiar acidentalmente de uma rotina que iniciei sem ter em conta o duelo e outra, bem diferente, seria agora preparar-me de propósito para o duelo antes de avisar Igor. Se antes sonhava com a morte de Igor por capricho, agora faço-o como método. Imaginar-me como o assassino de Igor (ainda que num duelo) traz para o presente o pensamento retrospectivo futuro, algo que poderia dar cabo de mim se já tivesse dado cabo de Igor, mas que com Igor ainda vivo pode ser corrigido. Não é nada fácil conceber um crime quase perfeito. 

 

Foi com estes pensamentos que cheguei a uma comparação pertinente: será que o duelo tem vantagem sobre uma legítima defesa forjada? Se for bem forjada, a legítima defesa tem um valor social superior ao do duelo, mas para a consciência o duelo é uma solução preferível. A questão está em saber se a vantagem social é suficiente para se tolerar o peso acrescido para a consciência. Trata-se obviamente de um problema quotidiano, mas que aqui se agudiza.

 

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