Uma crítica paquidérmica
Eremita
Como nunca mais sai o opus II da empolgante biografia de Filomena Mónica, domestico a curiosidade de saber qual a cor das cuecas de António Barreto com a leitura de A viagem do Elefante, de José Saramago. Primeiras impressões (à página 30):
1. O problema de Saramago não é a tendência para a alegoria primária, como se diz por aí, mas sim a sua insatisfação permanente com a figura do narrador. Sempre que Saramago consegue controlar os seus impulsos de omnisciência histérica, sai um grande livro. Este parece ir pelo bom caminho, mas o elefante ainda nem a Castela chegou.
2. Já ouvi dizer que este é o livro de Saramago em que a ironia deu lugar ao humor, coisa que é um absurdo formal porque a ironia é humor, mas que interpreto como uma tentativa de dizer que há nestas páginas material para induzir uns sorrisos e - quem sabe - até umas gargalhadas. O humor - ao contrário do talento para assessor de ministro - tem essa coisa chata de ser facilmente quantificável e optei por testar esta ideia transcrevendo para aqui todas as situações de elevado potencial histriónico que o livro tem. Até ao momento, conto apenas uma:
"...Subhro. Subro, repetiu o rei, que diabo de nome é esse, Comagá, meu senhor, pelo menos foi o que ele disse, aclarou o secretário, Devíamos ter-lhe chamado Joaquim quando chegou a Portugal, resmungou o rei". (página 26)
3. O português intemporal de Saramago protege-o dos anacronismos, mas creio ter pescado um na página 65. Diz ele:
"... todos aplaudindo com entusiasmo, dando vozes de alegria, se isto aqui fosse um barco de piratas seria a altura de dizer, Um rum duplo para todos."
Na página anterior, Saramago escreve ".. um recurso a que, antecipando cinco séculos, poderíamos chamar terceira via", ou seja, o narrador tem noção do tempo. Assim sendo, é duvidoso que num barco de piratas do segundo ou terceiro quartéis do século XVI se brindasse com rum (isto para já não falar da fórmula "rum duplo", que me parece decalcada de "whisky duplo"). Salvo erro, o rum só se tornou popular durante o século XVII. Mas isto - claro - vale o que vale.
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