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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

13
Dez08

Rue du Château


Eremita

 

 

Viver nesta casinha tão parca de electrodomésticos obriga-me a levar a roupa a uma lavandaria. Apesar de Ourique ter um único destes estabelecimentos, a sua existência parece-me notável. Lisboa tem seguramente menos lavandarias por 100 000 habitantes do que Ourique. Aliás, não me lembro de ver lavandarias em Lisboa. Consigo contar de cabeça algumas casas de lavagem a seco na capital, mas estes lugares são um indicador  de bem-estar económico e as lavandarias comuns um indicador da solidão urbana. Daqui decorre que a solidão deve ser maior em Ourique do que em Lisboa, ou então que a lavandaria ouriquense é um acidente. Em favor da primeira hipótese, foi preciso ir de Lisboa para Paris para me  iniciar nas lavandarias e foi nessa cidade que primeiro conheci a solidão. Não sendo isto forçosamente uma relação causal, a verdade é que a coincidência tende a ser uma explicação insípida.

 

No nosso bairro havia um complexo de serviços que incluía uma lavandaria. Lembro-me de lá entrar pela primeira vez com a minha namorada. Éramos felizes e convencionais: eu carregava a roupa, ela separava-a e doseava depois o detergente e o amaciador. Enquanto decorria a lavagem, saía para outros afazeres, deixando-me de plantão lá dentro. Então eu lia, sem ter consciência de que começava ali o meu estágio, ainda com assistência- também as crianças se aventuram primeiro em bicicletas com rodinhas. Certo dia, num desses momentos em que estava sozinho na lavandaria, entrou uma rapariga irlandesa que tive a oportunidade de auxiliar, chegando a dosear-lhe o amaciador. Esta experiência soube-me a transgressão - e também só agora percebo que foi um engodo que me encheu de infundadas esperanças, tendo talvez acelerado a minha separação.

 

A solidão veio mesmo, numa outra rua da mesma cidade. Naturalmente,  procurei uma nova lavandaria. Lembro-me de lá entrar com a roupa. Só a minha roupa. Lembro-me de a separar. De dosear a roupa com o detergente. De abdicar em consciência do amaciador. Lembro-me de ficar depois a olhar para o tambor que rodava como quem espera ser levado em analepse para outro sítio e outra vida. Nunca experimentei uma sensação de melancolia tão pura. Não havia ali desespero, nem depressão, nem nostalgia. Era mesmo aquela tristeza sem objecto, que me parece uma boa definição deste estado de alma.

 

Fui salvo por uma outra mulher. Não lhe fixei o nome e não creio que pudesse reconhecê-la hoje. Não se pense que foi um daqueles encontros fugazes e inconsequentes a que mais tarde me habituaria. Durante um período, vimo-nos com frequência. Eu chegava primeiro, depois do trabalho. Era sempre de noite, menos no Verão. A rua para onde a lavandaria abria já havia escoado a agitação da hora-de-ponta. Por vezes mais alguém estava lá dentro. Um preto. Um magrebino. Um estudante. Mas não era raro o espaço ficar por momentos todo à minha disposição. Então ela chegava, sempre pontual, e cumprimentávamo-nos com gosto indisfarçável.

 

Nunca antes escrevi sobre esta mulher, mas lembro-me dela mais vezes do que de raparigas que comigo se deitaram e que usei para destilar versos, prosa sentimentalóide ou exercícios de dor-de-corno. A sua missão era lavar a lavandaria, o que só agora me parece bastante poético - talvez por me sentir em falta. Era o que se convencionou chamar "uma força da natureza". Tinha 3 empregos, trabalhava 7 dias por semana, noite e dia, cuidava da família. Se Paula Rego a tivesse visto na altura, iria querer pintá-la, porque ela parecia-se com o que a pintora decidiu ser a imagem da mulher portuguesa. Lavar a lavandaria era talvez o seu trabalho menos pesado e gosto de pensar que as nossas conversas  lhe aliviavam o dia. Em rigor, era um monólogo. Eu limitava-me a fazer de sounding board. E ela falava tanto que, apesar de não me lembrar do seu nome, tenho a planta dos dois andares da sua casa no Pombal na cabeça. Poder ouvir de alguém os seus projectos de vida, sem os filtros e o calculismo das pessoas sofisticadas? Que graça rara. Fiz deste sonho de emigrante concretizado referência. Desde então, assisti a dezenas de keynote addresses, palestras de gente reputada que singrou na vida e se julga na obrigação de passar o seu testemunho, entre outros sermões seculares. Foi tempo perdido. A cada encruzilha, voltava sempre à lavandaria da rue du Château e perguntava: "qual é, afinal, a tua casa no Pombal?" É Ourique, claro - a pergunta está datada, mas foi-me útil.

 

A fotografia é um pormenor da decoração de uma das janelas da lavandaria de Ourique.

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