Um trabalho
Eremita
São várias as razões que levam uma pessoa a falar pouco. No meu caso, é crescente a necessidade de me furtar à censura a posteriori com que, logo pela manhã, revejo o que disse na véspera. Esta rotina agrava-se quando ando a ler e a escrever pouco, como tem sucedido neste mês de Agosto. O Judeu já se queixou.
Entretanto, pedi-lhe trabalho. O meu saldo bancário está negativo e nenhum dos projectos profissionais avançou. Tenho sobretudo pena de o negócio de ghost writer não se ter concretizado. Creio que seria capaz de escrever a autobiografia de Pedro Santana Lopes, respeitando-lhe o estilo e até a pontuação. E não seria difícil fazer o mesmo com outras personalidades da vida pública nacional, inclusive alguma senhora. Daí este trabalho, de contornos ainda mal definidos. De modo autodepreciativo, defini-me como o homem-a-dias do Judeu, mas ele prefere o termo "assistente" e optou por me dar a lista de tarefas que não quer que eu execute, como varrer e limpar a casa, cozinhar ou lavar-lhe a roupa. Suponho que sobra a função de motorista, o registo nocturno do tempo de imobilização do baloiço (1 e 2) e algum ocasional trabalho pesado.
Achei ternurento. O Judeu quer preservar a minha masculinidade - as vagas de feminismo passaram-lhe completamente ao lado e só a mutilação genital feminina e dramas de outras geografias o indignam; nem sequer o facto de a mulher que tira cortiça receber menos do que o homem o preocupa muito, embora ele reconheça que a solução consensual seria o pagamento ao quilo de cortiça e não à hora. Não discuti o ordenado, creio que andará à volta de dois salários mínimos, o que me chega para a renda, a comida, os livros e Espanha (mulheres, preservativos, gasolina e bocadillos). Pode ser que agora o Ouriquense ganhe alguma consciência de classe e que O Capital passe a ser uma das leituras comentadas. Também preciso de voltar ao Proust, mais por obrigação do que desejo - as saudades que tenho são das personagens do grande russo. Mas, essencialmente, estar vivo é agradável.