Sexo, música e Marcel Proust
Eremita
Et, avec une solennité qui était nouvelle chez lui [Swann]: «Ce sont des êtres magnanimes, et la magnanimité est, au fond, la seule chose qui importe et qui distingue ici-bas. Vois-tu, il n’y a que deux classes d’êtres: les magnanimes et les autres; et je suis arrivé à un âge où il faut prendre parti, décider une fois pour toutes qui on veut aimer et qui on veut dédaigner, se tenir à ceux qu’on aime et, pour réparer le temps qu’on a gâché avec les autres, ne plus les quitter jusqu’à sa mort. Eh bien! ajoutait-il avec cette légère émotion qu’on éprouve quand même sans bien s’en rendre compte, on dit une chose non parce qu’elle est vraie, mais parce qu’on a plaisir à la dire et qu’on l’écoute dans sa propre voix comme si elle venait d’ailleurs que de nous-mêmes *, le sort en est jeté, j’ai choisi d’aimer les seuls cœurs magnanimes et de ne plus vivre que dans la magnanimité. Un Amour de Swann
*Doravante, assinalarei a amarelo as passagens de elevado teor proustiano
É costume dizer-se que o tema mais ingrato de abordar em literatura é o sexo. Tenho dúvidas. Será seguramente a opção mais fácil de parodiar, mas não há nada de misterioso no sexo, que é a mais simples das interacções: surge o desejo, o pénis cresce, a vagina lubrifica-se, vem a cópula, partilha-se um cigarro - a versão homossexual deste enredo ainda é mais simples, por dispensar um substantivo. Difícil é escrever sobre música. Os críticos de música pop resolveram este problema de uma forma engenhosa: a propósito de música, escrevem sobre tudo o resto, da pose ao penteado, da importância de uma letra na adolescência ao choque de egos dentro da banda, só que não escrevem sobre música. E os poucos que escrevem, fazem-no mal, oscilando entre a apreciação técnica que ignora a melodia, a harmonia e o ritmo, concentrando-se no acessório, das "influências" a aspectos conspícuos, como a versatilidade instrumental de sicrano ou o virtuosismo de fulano no baixo-eléctrico, e o arrebatamento lírico que nos toma por cúmplices passivos; há apenas uma corporação que desprezo mais do que a dos críticos de música pop, só que não vou perder agora tempo com os criativos da publicidade. Quanto aos críticos de outros géneros musicais, não sendo tão grave, a situação está longe de ser satisfatória. Parte do problema resulta da desadequação do meio ao tema. Enfim, isto tem tanto de trivial - a escrita comunica-se em silêncio e a música faz-se de interrupções do silêncio -, como de tosco - a gastronomia funciona muito bem na forma escrita, sem que precisemos de trazer o papel ao paladar. Parte do problema, a parte do leão (for disambiguation, see Leão* Tolstói), resultará então do mistério da própria música, mas seria estúpido tentar explicá-lo aqui e agora.
Creio que uma das grandes ideias de Proust foi escrever um ensaio sobre estética em forma de romance, o que ele concretiza com um equilíbrio feliz de enredo e teoria. As passagens sobre a sonata de Vinteuil criam tanta ou mais tensão dramática do que o romance entre Odette e Swann, e tal como na personagem interpretada por Moretti crescia a vontade de ver o candidato D'Alema dizer alguma coisa de esquerda à medida que o debate avançava, também em mim cresce a vontade de ver Proust escrever qualcosa sobre Wagner.
Vem isto a propósito da compra de um livrinho que recolhe as reflexões de Eduardo Lourenço sobre música. Estou com um enorme receio de avançar. Não só a autora da recolha, no texto de abertura, deixa a impressão de que os abutres se lançaram sobre a arca de Lourenço com uma precipitação que atraiçoa a sua condição necrófaga, como não cheguei ainda aos anos da magnanimidade a que Proust se refere na passagem supracitada e que me permitirão assumir um dia o amor incondicional pela obra de Eduardo Lourenço, sem que entretanto tivesse chegado o desprezo por Lourenço que alimenta alguns jovens turcos da intelectualidade lusa.
* Ver comentário de Pirata Vermelho.
Ficha Técnica: a série "Recherche" baseia-se na escuta do audiolivro A la Recherche do Temps Perdu: L'Intégrale (111 CD), que conta com André DUSSOLLIER, Lambert WILSON, Denis PODALYDES, Robin RENUCCI, Mickael LONSDALE e Guillaume GALLIENNE. As citações são retiradas da magnífica edição online da eBooks@Adelaide - e viva a Austrália.