Aquela frase na sonata de Vinteuil
Eremita
Madeleine Lemaire ('Madame Verdurin') - foi o que se arranjou, mas espero que compreendam que não podia meter aqui a Rachel Weisz.
Swann enamorou-se de Odette e associou-a a uma frase musical que ouviu na sonata de Vinteuil, num serão em casa dos Verdurin. Parece-me inverosímil. Swann é já um mulherengo experiente e só os jovens namorados têm tendência a associar o namoro a uma melodia. Em todo o caso, Proust faz serviço público, pois lembra-nos que esta tradição precede o aparecimento da MTV e do videoclip. Mas insisto na inverosimilhança, embora mais não possa do que partilhar a minha experiência pessoal e dela fazer regra. Só associo dois namoros a músicas e foram o primeiro e o segundo. Não digo quantos tive, mas asseguro que a probabilidade deste padrão surgir por acaso é extremamente baixa. A primeira música, que tocava na cave onde nos beijámos pela primeira vez, fazia parte da banda sonora do filme Karate Kid. Era o The Glory of Love.
Pouco tempo depois, já em pleno segundo namoro, veio a Pavane pour une infante défunte.
A transição Peter Cetera-Maurice Ravel ilustra bem a profunda revolução operada por esta segunda mulher na minha vida, que no fundo radica numa única epifania: a descoberta do gozo do gosto adquirido. Enfim, retomando o tema, nunca mais voltei a associar músicas a namoros ou, o que é mais rigoroso, nunca mais tive prazer em alimentar esse tipo de memória, pois sem esforço poderia recuperar uma música de cama, uma canção para umas férias de Verão, temas para ouvir com o volume muito alto enquanto se aspira a casa em trajes menores e harmoniosa conjugalidade, e até duas canções que escrevi, uma das quais ainda sei de cor, entre outros possíveis recuerdos musicais associados a mulheres. Sucede que não me interessa essa catalogação. Se são vários os motivos para ter desistido, creio que a palavra "catalogação" faz uma síntese feliz, acrescentando apenas que a tralha passional da outra pessoa e a pobreza musical da pop geram a desconfiança insanável de que a associação não é absolutamente exclusiva, mas uma reciclagem, um pouco como a desconfiança que surge quando, pela manhã, na casa onde vive sozinha, ela desaprova que voltemos a vestir as mesmas cuecas e retira da gaveta uns boxers lavados que não nos pertencem. Ao menos o Cetera teve a pureza das coisas instintivas - vá, inconscientes. E o Ravel foi já programado, sim, mas de uma forma que me parece insuperável e que nem sequer resulta de um exercício desonesto de presciência retroactiva que me levasse a retirar sentenças do título da Pavane ou da sua melancólica harmonia, pois o que conta mesmo é a imagem da jovem pianista que amei, de costas, tocando no piano vertical do quarto. Agora o Proust, com aqueles rodriguinhos à Proust:
Or, quelques minutes à peine après que le petit pianiste avait commencé de jouer chez Mme Verdurin, tout d’un coup après une note haute longuement tenue pendant deux mesures, il vit approcher, s’échappant de sous cette sonorité prolongée et tendue comme un rideau sonore pour cacher le mystère de son incubation, il reconnut, secrète, bruissante et divisée, la phrase aérienne et odorante qu’il aimait. Et elle était si particulière, elle avait un charme si individuel et qu’aucun autre n’aurait pu remplacer, que ce fut pour Swann comme s’il eût rencontré dans un salon ami une personne qu’il avait admirée dans la rue et désespérait de jamais retrouver. A la fin, elle s’éloigna, indicatrice, diligente, parmi les ramifications de son parfum, laissant sur le visage de Swann le reflet de son sourire. Mais maintenant il pouvait demander le nom de son inconnue (on lui dit que c’était l’andante de la sonate pour piano et violon de Vinteuil), il la tenait, il pourrait l’avoir chez lui aussi souvent qu’il voudrait, essayer d’apprendre son langage et son secret. (...)
A son entrée, tandis que Mme Verdurin montrant des roses qu’il avait envoyées le matin lui disait: «Je vous gronde» et lui indiquait une place à côté d’Odette, le pianiste jouait pour eux deux, la petite phrase de Vinteuil qui était comme l’air national de leur amour. Il commençait par la tenue des trémolos de violon que pendant quelques mesures on entend seuls, occupant tout le premier plan, puis tout d’un coup ils semblaient s’écarter et comme dans ces tableaux de Pieter De Hooch, qu’approfondit le cadre étroit d’une porte entr’ouverte, tout au loin, d’une couleur autre, dans le velouté d’une lumière interposée, la petite phrase apparaissait, dansante, pastorale, intercalée, épisodique, appartenant à un autre monde. (...)
Il trouvait ouverts sur son piano quelques-uns des morceaux qu’elle préférait: la Valse des Roses ou Pauvre fou de Tagliafico (qu’on devait, selon sa volonté écrite, faire exécuter à son enterrement), il lui demandait de jouer à la place la petite phrase de la sonate de Vinteuil, bien qu’Odette jouât fort mal, mais la vision la plus belle qui nous reste d’une œuvre est souvent celle qui s’éleva au-dessus des sons faux tirés par des doigts malhabiles, d’un piano désaccordé. La petite phrase continuait à s’associer pour Swann à l’amour qu’il avait pour Odette. Il sentait bien que cet amour, c’était quelque chose qui ne correspondait à rien d’extérieur, de constatable par d’autres que lui; il se rendait compte que les qualités d’Odette ne justifiaient pas qu’il attachât tant de prix aux moments passés auprès d’elle. Un Amour de Swann
Ficha Técnica: a série "Recherche" baseia-se na escuta do audiolivro A la Recherche do Temps Perdu: L'Intégrale (111 CD), que conta com André DUSSOLLIER, Lambert WILSON, Denis PODALYDES, Robin RENUCCI, Mickael LONSDALE e Guillaume GALLIENNE. As citações são retiradas da magnífica edição online da eBooks@Adelaide - e viva a Austrália.