O Luís
Eremita
Seestück (Gegenlicht)
Seascape (Contre-jour)
O Luís foi o único amigo que fiz em Ourique quando era criança. Temos a mesma idade, mas ele era mais pobre, mais moreno, mais forte, mais rude e experiente com a fisga e a flóber. O contraste entre o campo e a cidade era perfeito e havia ainda isto: o Luís nunca tinha visto o mar. Para se perceber, devemos primeiro olhar de fora, muito de fora, por exemplo, da Lua, e notar que há no planeta mais partes de água do que de terra. Devemos depois mudar de perspectiva com uma piscadela, passar a ver de dentro, isto é, com os olhos do Luís, mas ainda informados pela paisagem que se avista da Lua. Só assim se terá uma ideia do que foi o seu baptismo de mar. À distância, foi uma experiência imperfeita, um pouco como ter a primeira relação sexual num prostíbulo. Demos-lhe o mar da Praia da Rocha e não nos ocorreu que teria sido melhor levá-lo até uma anseada deserta qualquer próxima de Sagres. Não nos ocorreu fazer daquele momento uma cerimónia, colocar-lhe uma venda para que não fosse fulminado por uma nesga de mar quando ainda estivesse dentro do carro. Mas quantos pais farão de mostrar o mar aos filhos um marco? Há as primeiras passadas, o dia em que se tira as rodinhas da traseiras da bicicleta, a primeira comunhão, etc., mas não se regista o primeiro dia em que se vê o mar. Pelo menos eu ainda me lembro de o ver a correr pela praia como um touro bravo - vá, um pequeno touro bravo - e quando ando por Ourique demoro-me sempre mais um instante nos rostos dos homens, estando ainda por esclarecer se o Luís emigrou, morreu ou mudámos tanto que não nos reconhecemos.