Aconteceu uma coisa extraodinária
Eremita
Creio que foi Miguel Esteves Cardoso quem sugeriu que o esforço investido na escrita de uma carta deve ser inversamente proporcional ao número dos seus prováveis leitores. Esta formulação é muito inteligente, porque o seu carácter contraintuitivo cria uma tensão que só se resolve a contento de todos quando pensamos no exemplo da carta de amor. Não estamos diante da simples excepção que confirma a regra, mas que a salva, que lhe dá sentido. É como se houvesse uma descontinuidade tão abrupta na função, que acaba por ser a sua essência. É como se o problema deixasse de ser o da falta de universalidade da regra, mas o seu contrário, isto é, o da desadequação do universo à regra. Em suma, é como se apenas interessasse o amor.
© Rita Pinamona
Sendo de uma generalidade apenas aparente, nem por isso a aplicação directa da teoria geral de Miguel Esteves Cardoso à carta de amor resulta necessariamente redundante. Em concreto, quando usada para captar a essência da carta de amor perfeita, chegamos a conclusões que recuperam o carácter contraintuitivo da teoria geral, mas agora também dentro do universo restrito e tido por excepção, pelo que as conclusões são novas. Ressalvo que a aplicação não visa definir um tipo de carta de amor, o que seria uma infantilidade; pretende-se apenas identificar um critério que permita avaliar uma tendência e que apenas compara, não define. Ora, construindo a partir da teoria geral, mas num esforço simultâneo de dedução e indução, creio que o caminho para chegar à carta de amor perfeita é dado pela aproximação assimptótica a zero do número dos leitores sobre o tempo investido na escrita. É um rácio, mas podemos simplificar: vale mais uma carta que demorou 1 mês a ser escrita do que a que foi feita em 5 minutos e vale mais a carta que for apenas lida pelo destinatário do que aquela que entra de imediato no domínio público.
Aqui, a tensão é menos óbvia, mas está ainda presente. E não subsiste como mera recapitulação fractal do caso geral. A tensão é criada entre o valor dado à privacidade e o valor social das celebrações públicas de amor. Como não nos parece que se resolva o paradoxo relembrando que uma carta de amor é apenas um dos tipos de cartas, que são objectos da esfera privada, devemos procurar outra explicação.
Continua