Infinita mortalidade
Eremita
Já foi por outros tratada a angústia do leitor. Ele começa a fazer contas ao tempo de vida que lhe resta, aos livros que leu, à sua velocidade de leitura, medida em número de páginas ou centímetros de lombada por unidade de tempo, e conclui que não lhe será fisicamente possível ler tudo o que gostaria de ler. Como há alguma matemática neste exercício, talvez as gentes das humanidades falhem a estimativa e vivam numa ilusão de imortalidade, mas quem sempre acertava no ponto em que se cruzam o comboio que parte de Lisboa em direcção ao Porto à velocidade de 90 Km e o comboio que, ao mesmo tempo, sai do Porto em direcção a Lisboa a 80 Km, tem uma noção exacta do fim da linha. Em regra, esta angústia traduz-se num lamento público e, na sua forma mais criativa, o lamento gera soluções, sendo a seguinte ainda mais estapafúrdia do que a anterior: fazer um curso de leitura acelerada, abandonar os filhos, a mulher e o trabalho, contratar um actor que ande sempre ao nosso lado e nos leia ao ouvido, inventar uma engenhoca que se aplique na cabeça e coloque o livro à distância ideal, deixando as mãos livres e o ângulo de visão ainda amplo o suficiente para evitar acidentes enquanto se caminha. Na forma mais aborrecida, o leitor apenas refere os livros que leu, os que conta ler e os que provavelmente já não lerá e gostaria. Sinto esta sofreguidão com todos os autores que me parece importante conhecer, menos com David Foster Wallace. Devoro imediatamente tudo o que encontro escrito sobre ele, de que é exemplo esta recensão de The Pale King (belo título, livre de verbos), a obra póstuma e inacabada, mas consumo a sua prosa muito devagar, parecendo dar goles pequeninos no último copo de um vinho precioso. Pode ser que se trate de uma espécie de tributo, uma forma de lhe prolongar a existência, como se ele continuasse vivo enquanto houver prosa virgem por descobrir, mas eu apenas já só acredito no critério da parcimónia para decidir entre duas explicações e aprendi a desconfiar das que são belas porque me comovem.