Problema e solução
Eremita
Da tábua de personagens do Ouriquense:
"Tatiana, uma ucraniana caixa no Pingo Doce, é uma mulher de anatomia e personalidade imprecisas. A indefinição dos seus contornos físicos e psicológicos é essencial para que seja camaleónica e assim cumpra as funções de passe-partout passional que recolha as características dos objectos passionais do seu criador, reais ou fantasiosos, e de todos os tempos. Mesmo em relação ao seu nariz, que foi já descrito com grande precisão, o leitor atento ficará com dúvidas, pois há uma contradição: Nariz à Rosemarie DeWitt ou "nariz fino, pouco comprido, mas muito nobre? E, afinal, se não há rosto passível de ser amado no local de trabalho de Tatiana, quem era aquela mulher que lhe terá dado um rosto provisório? Não se sabe".
Da orgânica:
"O Ouriquense continua a fazer o seu caminho no sentido da perfeição aparente. Um pouco como na ascensão da psicanálise a instrumento de dissecar biografias, se me é permitido. Ou como a génese de todas as restantes metafísicas, bem vistas as coisas. Para tudo começa a haver aqui uma explicação absolutamente consistente, mas também impossível de invalidar e tendencialmente barroca. É a laborar neste paradoxo de querer lógica interna naquilo que não precisa de qualquer lógica - como se a loucura precisasse de verosimilhança - que vai crescendo o capricho do artista.
Com o eremita na praia, os Quo vadis podem existir, porque não são escritos pela personagem e sim pelo narrador".
O problema e a solução
O traço mais revelador da misoginia do eremita é esta ideia de ter Tatiana como passe-partout passional no diário. Tatiana corporiza uma ideia de amor, tão indefinida como ela própria, embora a indefinição da ideia resulte da incapacidade de raciocinar de forma clara ou de uma recusa do raciocínio, enquanto a indefinição de Tatiana foi, para os padrões do blog, uma ideia luminosa. Nada disto é paradoxal, são apenas contrastes de algum efeito. Estamos é claramente num contexto de hipocrisia de ventríloquo. Porque se o eremita é uma invenção do narrador, a misoginia é toda minha e o eremita faz de boneco desbocado inimputável. Em rigor, ele não sabe que Tatiana é uma súmula de paixões; uma súmula e não uma soma. Não existe quimerismo no corpo de Tatiana. E se deslizo sempre para a dicotomia espaço-tempo, só mesmo de modo esforçado podemos ver no passar dos dias a manifestação de algum quimerismo, na medida em que às sensações que em determinado dia foram transferidas para Tatiana se vão juntando outras de fontes distintas. Simplificando, para Ourique traslado Lisboa e para Tatiana traslado as mulheres. Mas este processo não a chega sequer a enriquecer como personagem. Se me for permitida uma desajustada metáfora, ela é a parede a que o tenista derrotado, depois de cada jogo com um adversário diferente, recorre para bater umas bolas e reencontrar o seu jogo. Ela não chega pois a ser um amor impossível, um campeão invencível que se pretende derrotar. É uma simples parede e contra uma parede não se pode ganhar, nem perder. Creio que até o eremita percebe a natureza de Tatiana em breves instantes de lucidez, como nesta sua conclusão, na sua falta de desejo carnal, que esgota nos prostíbulos de Espanha, no reprimido desejo de paternidade, que transformou em instinto assassino, e no interesse e curiosidade que o Judeu lhe desperta e com quem se zangou, sensações que Tatiana não chega a despertar. Assim se anula o amor em Ourique e nos ilibamos de culpas, pois não há nada mais ridículo e repetitivo do que a exposição da frustração amorosa (a menos que seja na forma de uma boa canção pop, claro).
Suponhamos agora que o narrador quer salvar alguém do vazadouro passional que é Tatiana, isto é, que evitar a Tatiana do eremita funciona como um sinal de que algo precioso lhe surgiu no caminho e deve ser guiado para longe da via que se sabe inconsequente à partida. Como conciliar este desejo com a simplicidade passional do eremita e sem matar Tatiana, que seria um recurso de guionista de telenovela? Creio que a única solução passa por um amor epistolar para o eremita. Seria um desenvolvimento consistente com a atomização de sensações da personagem, incapaz de as concentrar numa única pessoa. Sem abandonar as suas rotinas e reforçando o seu desinteresse por Tatiana, que de resto precedeu o problema, embora se encaixe bem na solução, ele passará então a escrever a alguém que nunca viu e provavelmente nunca verá, mas de um modo sincero e não como no pastiche de Cervantes dedicado a Tatiana, a manifestação mais exuberante de uma forma de comunicar contida. Contida. Fica então explicado o aparecimento de Rita Pinamona.