Uma namorada para Kim Myong-Guk
Eremita
A publicação apressada deste rascunho incompleto visa aumentar a pressão (pressão alta, na gíria) para começar o conto sobre futebol de título O Nosso Antídoto é o teu Veneno. Estou muito empolgado com esta futura história inspirada na figura de um anti-Messi, um defesa do Real Madrid que treina o ano inteiro exclusivamente para as 4, 5, 6, por vezes 7 partidas anuais em que defronta o génio argentino. Os nomes de clubes e jogadores não vão aparecer, mas a inspiração é essa. Antes preciso de acabar esta história, a que uma leitora já disse que "faltava algo" e suspeito que não era apenas o fim. Nada como publicar os 30% entretanto produzidos para escrever os restantes. Ainda não consegui fazer passar esta ideia aos meus leitores, mas no Ouriquense a exposição da incompletude é um meio para atingir um fim.
Da varanda mais alta de um robusto edifício cinzento e com uma frente de imponentes colunas, dois militares de fardas bem adornadas espreitam as actividades que decorrem no pátio. Ambos se concentram nas costas nuas de Kim Myong-Guk, a grande esperança da nação para as Olimpíadas que se aproximam. Campeão mundial de halterofilismo na categoria de pesados, tanto no arremesso como no arranque, detém ainda 4 das 5 melhores marcas de sempre em ambas as especialidades na categoria de - 105 kg e dois recordes mundiais obtidos dentro do país, incluindo um recorde absoluto no arranque, mas não homologados pela federação internacional da modalidade, gestos que a nação entendia como uma ingerência do capitalismo imperialista nos seus assuntos internos e que reforçaram o estatuto de Kim Myong-Guk como herói do povo, só ultrapassado nas representações iconográficas pelo Grande Líder, para grande inveja do filho deste e seu natural sucessor, um jovem enfezado, incapaz de erguer o mais leve dos halteres e que parecia não apreciar as mulheres. Os dois militares, apesar das condecorações e insígnias, são de baixa patente e muito novos. Comentam o físico de Kim Myong-Guk, que parece alongar-se tanto na horizontal, dentro dos limites da anatomia, como as verticais do edifício se erguem para o céu, dentro do permitido pela arquitectura. Há uma tendência para não se trabalhar os músculos que não vemos, mas as costas de Kim Myong-Guk lembravam uma cordilheira que algum acidente geológico fez simétrica. Cada músculo parecia destacar-se dos restantes, inclusive os da região lombar, tão volumosos e lustrosos pelo Sol daquela manhã reflectido no suor que chegaram a despertar num dos militares um vago ímpeto de canibal, logo expulso do pensamento com um rápido sacudir de cabeça, que o fez regressar à conversa com o seu compalheiro.
- Fala-se em não o deixar ir aos Jogos.
- Seria desastroso para a nação, ele é a nossa única esperança de uma medalha de ouro.
- Temem que não regresse.
- Não seria a primeira vez que sai.
- A tensão subiu. O número de tentativas de fuga quase triplicou e a estimativa é feita a partir do número de abatidos na fronteira terrestre, não se sabe se entretanto cavaram túneis e quantos se lançam ao mar. Há antenas clandestinas por toda a parte que recebem os canais estrangeiros. As revistas americanas são plastificadas e alugadas aos 10 minutos.
- É o tempo que demoram a ver as fotografias.
- Pouco importa que não as saibam ler, ficam fascinados com a publicidade.
- Não acredito que Kim Myong-Guk nos traísse.
- E o que te leva a essa certeza?
- A forma como festeja as vitórias que consegue para a pátria.
- Que coincidem com as suas próprias vitórias.
- Ele emociona-se com o hino.
- Nunca chorou.
- Não é de chorar.
- Nem de falar. Nem de sorrir. Myong-Guk é um mistério. Não se sabe o que pensa.
- O que não implica que queira fugir... Ele aqui é idolatrado, em qualquer outro lugar seria só mais um asiático que confundiriam com um chinês.
- Ele é conhecido dentro da especialidade em todo o mundo. Viste a capa da Time?
- Sim, chegou-me às mãos. E daí? Noutro lugar seria uma atracção de circo, propaganda contra o comunismo. Seria infeliz, sem amigos e sem família.
- Mas que amigos tem ele aqui? E já te esqueceste que é órfão de mãe e pai.
- Reconheço que Myong-Guk é para o taciturno. Daí a ser um traidor...
- Tu não fugirias?
- Por quem me tomas?
- Por alguém que confia em mim. Não fugirias? Não tens vontade de viver noutro lugar?
- Nós estamos bem encaminhados para subir na hierarquia do partido, vamos ter boas vidas.
- Responde com sinceridade.
- Nem vale a pena falar sobre isso. Tenho família, não poderia fugir e deixá-los cá.
- Justamente.
- Por Myong-Guk ser órfão?
- E por nada o ligar nós. Se gostar daqui, é o patriota mais apático que esta terra viu nascer.
- O homem é um campeão, são feitos de outra fibra.
- Por vezes parece autista.
- É da capacidade de concentração. Sente o perímetro do teu braço. Não podes saber o que é erguer 220 kg.
- Tu acreditas nesse resultado?
- Eu conheço o valor nosso povo. E tu?
- Eu conheço os valores dos nossos líderes.
Enquanto a conversa decorria, havia atletas que treinavam no pátio, a céu aberto, outros que se abrigavam à sobra de umas amplas arcadas e outros ainda que corriam em volta da pista de tartã instalada sobre o extenso relvado que prolongava a imponência do edifício. O Grande Líder quisera fazer da sua residência oficial o local de treino da elite olímpica do país, para os animar com as suas palavras de incentivo e para mais facilmente se fotografar junto deles, não havendo dia em que as rotativas do jornal oficial do partido não fizessem correr a grande velocidade uma imagem sua junto com algum atleta e por vezes até experimentando algum aparelho, embora não de um ângulo que lhe fosse desfavorável ou se prestasse a algum gozo. A própria grande sala de recepções havia sido transformada num ginásio e o resultado era algo bizarro. A imponência e simbolismo dos frescos e baixos-relevos alusivos à revolução que adornavam todas as paredes contrastavam com a evidente utilidade de uns simples espaldares de madeira, entretanto instalados. E quando a luz deixava de entrar pelas estreitas janelas, que com a ajuda do permanganato de magnésio libertado para o ar das mãos dos atletas definiam raios durante o dia e davam ao recinto uma atmosfera de religiosidade, os enormes candelabros, suspensos no tecto a uns 15 metros de altura, acendiam em simultâneo e ligavam mal com os holofones também instalados de improviso, numa clara demonstração de que a luminotecnia era uma disciplina ainda sem grande tradição no país. Mas a mensagem era clara: o povo desejava que os atletas treinassem noite e dia, para glória da nação.
No princípio do ano das Olimpíadas, a revista Time publicara na capa de um número com uma extensa reportagem sobre o país uma fotomontagem em que Kim Myong-Guk surge como Atlas, erguendo um planeta ainda mais azul, pois só apareciam os países com regimes comunistas, o que foi visto nos círculos mais próximos do Grande Líder como uma provocação, embora certos conselheiros se apressassem a fazer ver que estava ali a prova de que o Grande Líder era a referência suprema entre as restantes nações comunistas. Kim Myong-Guk era um herói fora de tempo, num mundo já sem Guerra Fria.
Continua