Grandes momentos radiofónicos
Eremita
A rádio é o meio de comunicação mais nobre. Os jornais usam a escrita, mas a grande escrita é a literatura, não é o jornalismo. A televisão usa as imagens, mas as grandes imagens estão no cinema, não estão nos telejornais. A rádio usa a oralidade e como ninguém tem grande pachorra para os declamadores de poesia, a rádio não teme comparações. Também é o meio mais intimista, whatever that means.
O meu mais precioso momento de rádio foi ter apanhado Vergílio Ferreira a telefonar para um programa de Fernando Alves, tentando responder ao anseio de um fulano que sofria de agorafobia e gostava muito do escritor. À altíssima improbabilidade deste acontecimento - algo que o caro Macguffin talvez até descrevesse como uma impossibilidade formal - aliou-se a cruel e contraditória antipatia de Vergílio Ferreira, que se aproximou daquele homem mas para não o compreender. Ora, quando um existencialista não compreende um agorafóbico, creio que falta mesmo cumprir Portugal. Foi um instante único e a más horas, numa qualquer madrugada da década de noventa.
Sem que rivalize com a episódio anterior, não queria deixar de assinalar outro instante precioso. Aconteceu ontem, por volta da meia-noite, na Antena 1. Passava um programa sobre gravações raras dos Beatles, memorabilia acústica de altíssima qualidade, seleccionada pelo grande George Martin, tendo o radialista o cuidado de frisar que o material vinha de um tempo de bobinas, fitas e montagens a fita-cola, muito longe das possibilidades que o digital oferecia ao técnico de som que se encontrava à sua frente, o seu colega Jorge Martins. Fiquei parvo, mas confirmei que a sonoplastia do programa era mesmo assegurada por Jorge Martins. George Martin, Jorge Martins. Se o radialista tivesse dado pela coincidência, o instante perderia a graça. Como ouvinte agradecido, devo acreditar que o radialista deu pela coincidência e optou por não a explorar.