Quem matou Igor?
Eremita
Folhetim rico em ganchos, sexo explícito e xenofobia
[parental advisory]
[Spoiler warning - o primeiro policial com "spoiler warning"]
1. Um cidadão ilegal vem com uma mais-valia: a verosimilhança do relato da sua morte, na ausência de um corpo. É uma vantagem que não beneficia apenas os escritores; o Estado também ganha, porque entende o enigma da morte de um ilegal como uma solução para um problema que nunca chegou a formular. Isto, se não tem expressão nos indicadores de melhoria de desempenho, sempre se traduz num difuso e subtil aumento do bem-estar que alastra vertical e horizontalmente a toda a hierarquia e ramificações do funcionalismo público. "Morreu um ilegal? Não digas mais nada, deixemo-lo*. Morreu como viveu". Assim foi com Igor.
A morte de Igor não chegou sequer a ser sentida pela população da vila de Ourique. Se perguntarem por lá quem foi Igor, não obterão reposta. Os ouriquenses não são mais xenófobos do que a restante população portuguesa, só que em cada cidadão mora um burocrata. Uma morte trágica reabilita qualquer patife, que passa a ser recordado com alguma saudade, mas só acentua a condição de ilegalidade do ilegal, que pode ser definitivamente esquecido. Ou, para lembrar um desabafo de Chibanga, que chegou a partilhar pacotes de alcagoitas com Igor em algumas tardes de tédio, "faz-se hoje mais barulho por um touro do que por um ilegal". Serve então este relato para recuperar alguma desta honra de que desistimos colectivamente. Não pretendo prestar uma homenagem póstuma a Igor, que continuo a ver como uma besta e um idiota. Alás, eu queria matar Igor e continuaria a alimentar esse desejo se ele ainda estivesse vivo, embora agora pense sobretudo em matar quem matou Igor; temo até transformar-me no primeiro serial killer em pensamento, caso venha a descobrir o assassino de Igor e outro assassino por identificar se antecipe a mim, forçando-me a transferir o meu desejo de matança - e assim sucessivamente.