Ainda há tubarões na Ponta do Sol
Eremita
Geodésicas*
[republicação]
Esta história começa por entrar na nossa cabeça pelos olhos de dois miúdos sentados com as pernas para fora no muro da ponte que liga a ilha ao rochedo onde se construiu o cais da Ponta do Sol. São miúdos equipados com a dita coragem física, pois conversam sem pensar no baloiçar das suas pernas, a uns 15 metros da linha de água, o que para outros seria vertiginoso, mesmo tendo eles as coxas bem assentes em lajes e que as partes traseiras dos seus pés por vezes tocam nas asperezas do muro. Depois de terem respondido ao cumprimento de um velho que por eles passou, vêem-no agora nas escadinhas do cais, com a água já pelos tornozelos. O mar não está agitado, só que sob aquela ponte pode parecer ameaçador, talvez por um confronto de correntes ampliado por um qualquer efeito acústico e seguramente pela zona de sombra que ao fim da tarde apanha aquelas águas, criando uma ilusão de profundidade. Mas como estão habituados a saltar dali, mesmo na maré vazia e ao meio-dia, quando os pedregulhos do fundo parecem tão à superfície que o mais avisado seria apontar o mergulho para o espaço entre dois deles, aqueles dois mostram o conforto de quem venceu cedo os desafios do lugar, ajudado pela ignorância de quem não sabe que a ponte teve em tempos as barras de dinamite de um movimento independentista. Olham pois para o velho com uma imperturbável curiosidade, alheios ao vento que entretanto se levantou.
Como o nosso ângulo de visão apanha os dedos dos pés descalços de apenas um deles, creio que observamos o velho pelos olhos do miúdo mais próximo da falésia da ilha. Se o miúdo olhasse neste momento para a sua direita e subisse o olhar pela parede aprumada, talvez conseguisse ainda ver o cimo das ruínas de um posto de observação de cachalotes, mas não o fez e o mais certo é nunca ter visto tal bicho, pois até o velho só se recorda de lhe terem contado, quando era criança, que certo dia deu à praia um cachalote de que hoje já mais ninguém se lembra, embora talvez ainda dele alguém guarde um dente. Vemos então o pé do outro, que por vezes toca no velho, ao fundo, como se o empurrasse para a água. Nada mais parece chamar a atenção neste enquadramento. A luz do sol vem já rasteira, nenhum barco cruza a porção de mar que se abre pela frente, a vila e a praia estão escondidas atrás da falésia e, como é Abril, não há veraneantes no cais e hoje calhou não ter vindo para aqui nenhum par de namorados.
Um dos miúdos comenta as pregas de carne e pele do corpo do velho. Parecem-lhe estar "no lugar errado" e creio que se refere às da sua região lombar, mas nenhum deles conhece os efeitos das grandes oscilações de peso. É-lhes literalmente estranho aquele corpo, demasiado branco e com tantas marcas de geotropismo que a terra parece estar mesmo chamá-lo. O velho não se decide a entrar no mar.
Os rapazes impacientam-se. Vemos o pé do miúdo a balouçar mais depressa, sem que o movimento se torne mais amplo; a ilusão óptica continua, pois o velho também não saiu do seu lugar. Só que o dedo não tomba o velho. "Achas que sabe nadar?" Ele sabe nadar. Nadou muitos anos naquela praia. Apanhou lapas de mergulho armado de uma espátula de bricolage, conheceu o fundo daquele mar, gozou as cores da castanheta preta e do peixe rei - testemunhou que são cores que morrem fora de água. Uma rotina sua era dar a volta ao cais. Uma volta ao cais é um percurso curto, que se cumpre sem paragens em menos de 5 minutos, mas que num passeio demorado, para apanhar lapas e búzios, ou simplesmente para contemplar a paisagem subaquática, pode demorar uma hora. Quando se dá a volta ao cais passa-se sempre sob a ponte, pelo que com o céu limpo é impossível não cruzar uma zona de sombra, mesmo quando o sol está a pino. Na extremidade do rochedo onde se fez o cais que aponta na direcção do mar, dependendo da maré, o corpo pode ficar sujeito ao efeitos de uma ligeira rebentação e a água ganha turbulência por causa das bolhas de ar. O resto do percurso é mais tranquilo e quem olhar na direcão oposta à parede do rochedo que se contorna, excepto no estreito que a ponte cruza, vê sempre o fundo do mar, às vezes arenoso, outras vezes de seixos polidos, mas na horizontal não verá o fim, antes um azul a perder de vista, com uma profundidade ausente da campânula que é o céu e que é um horizonte indefinido, de onde de repente surgem criaturas monstruosas. Ele nunca deu uma volta ao cais sozinho.
Quando o irmão morreu, poucos anos depois da morte do seu pai, pensou em voltar ao cais. Ele gostava de nadar entre os dois, embora a sensação da segurança lhe pesasse na consciência, que aliviava forçando-se a por vezes a deixar o irmão nadar no meio, sem que alguma vez tivessem falado sobre isso. Só uma vez, ao fim de muitos anos, o irmão lhe confessou que não era por competição mas por medo que fazia tão depressa o trajecto de regresso do cais à praia. Não sabemos se isso lhe trouxe algum conforto, mas faz sentido pensar que a vontade de regressar ao cais quando já não havia ninguém no mundo capaz de o proteger nada tem de homenagem póstuma e mais não é que uma tentativa tardia de se reabilitar da sua cobardia de menino de que talvez até espere esfeitos retroactivos. Só que ter a água pelo tornozelo não chega.
Os miúdos percebem. Não percebem tudo, claro, mas o suficiente. A forma como o velho chega os braços ao corpo não é a de quem tem frio, mas a de quem tem medo. Sem hesitar, um deles atira-se do cimo da ponte. O velho é despertado do seu torpor pelo som do impacto na água e tem tempo de ver o mergulho do segundo miúdo. Tão novos. Os dois nadam depressa para perto dele e pedem que "o senhor" se junte a eles. O velho desata a chorar. Os miúdos ficam aflitos, saem da água, pegam no velho pela mão, levam-no para junto da sua roupa e ajudam-no a vestir a T-shirt. 5.10.2010
* Uma definição fantasiosa das Geodésicas está aqui. A definição rigorosa é esta: são textos escritos sem levantar o rabo da cadeira.