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Eremita
"To the happy few"
A Cartuxa restituiu-me o gozo da leitura jeux de rôle que nenhum dos escritores da moda consegue induzir, embora não com a intensidade irrepetível que experimentei com Robinson Crusoe e com a particularidade de ter reencarnado personagens sucessivas: primeiro Fabrício, depois a duquesa, e por fim o conde Mosca. Mosca, que com pena minha vai perdendo protagonismo, é a única personagem que não é corrompida pelo amor e o herói tranquilo de um livro de final precipitado - Stendhal aborreceu-se - que atinge o clímax demasiado cedo, com o amor de Sanseverina por Fabrício, e depois não tem por onde ir. A subsequente paixão de Fabrício e Clélia nunca arrebata, apesar de servida por raras qualidades cénicas - ele aprisionado na torre Farnese, ela filha do carcereiro, ela depois impossibilitada de o ver por uma promessa à la Madone e o amor proibido deles a acontecer durante anos numa literal penumbra - e pela tragédia - a morte do filho de ambos e depois de Clélia é tão pífia que o leitor se sente desalmado.
Apetece deixar aqui inúmeras citações de fina ironia - sobre os italianos, sobre a nobreza, sobre o jacobinismo, sobre os cortesãos - ou especular se as apenas 45 referências a vingança* num romance de 500 páginas sobre paixões e poder são um testemunho da crença de Stendhal no homem, ou ainda comentar a curiosa forma de traduzir "se disait-il" para "de si a si", que, não estando errada, torna as reflexões na tradução portuguesa ainda mais cómicas e teatrais, mas tenho preguiça e opto por terminar, também algo aborrecido, com duas peripécias de leitura. Dir-se-ia que ter feito da duquesa condessa, há uns dias, foi premonitório por acidente, pois a Severina, ao casar com o conde Mosca, acaba mesmo condessa. Outro frutuoso acidente foi ter treslido uma frase que antecipa o desfecho da fuga de Fabrício da prisão e que me parecera deslocada por retirar tensão ao relato subsequente, que li convencido de que o nosso herói não iria ser bem sucedido. Como ele consegue na verdade escapar, experimentei um volte-face digno de um escritor de aventuras melhor do que Stendhal realmente é.
* "Je croirais assez que le bonheur immoral qu'on trouve à se venger en Italie tient à la force d'imagination de ce peuple; les gens des autres pays ne pardonnent pas à proprement parler, ils oublient". (cap. XXI)