Alguém um dia fará a etimologia e distinção fina das seguintes expressões: catastrofista, ave agoirenta, cavaleiro do apocalipse, profeta da desgraça, Cassandras e colapsólogo, entre algumas outras que agora não me ocorrem. Entretanto, leiam o Guerreiro, que nos dá algum cosmopolitismo.
Esta tese do estado de excepção que estaria a ser aplicado em Itália sem outro motivo que não seja a regra a que se conformou o modo de gestão política e governação das democracias liberais gerou uma onda de críticas e contestações. Houve mesmo quem tivesse iniciado um artigo sobre o assunto com esta frase jocosa: “Não se percebe se a chegada do coronavírus a Itália anuncia o fim da liberdade, o fim da economia ou o fim de Agamben”. Mas a contestação mais pesada veio de França, de um filósofo que em tempos podia ser incluído na mesma “constelação” filosófica de Agamben, Jean-Luc Nancy, que escreveu para uma revista online italiana chamada Antinomie um pequeno artigo dirigido ao “velho amigo” Agamben (alguma inimizade filosófica adveio entretanto, tendo como motivo a questão biopolítica, que sempre provocou grandes resistências em Nancy), onde podemos ler esta afirmação: “É preciso não errar o alvo: uma civilização inteira é posta em questão, sobre isto não há dúvidas. Existe uma espécie de excepção viral — biológica, informática, cultural — que nos pandemiza. Os governos são apenas os tristes executores dela”.
Ao falar dos perigos que ameaçam uma “civilização inteira” (perigos que vêm de uma “excepção viral” mais vasta do que aquela criada por este novo vírus), Nancy aproxima-se daquilo a que os colapsólogos franceses chamam l’effondrement, o colapso. E a pergunta que esta colapsologia de largo espectro suscita é esta: o que é hoje o apocalipse, para nós? Até há poucas semanas, ele era, sobretudo, o desastre ecológico, a perspectiva de um mundo sem nós. Quanto a apocalipses económicos, uma longa história já nos habituou às crises cíclicas, a convicção generalizada é aquela que foi formulada desta maneira: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mas eis que, de repente, se apresenta uma emergência epidémica, um vírus que viaja nos mesmos circuitos globalizados da economia. E acontece algo completamente inesperado: o mundo seguia o seu curso a alta velocidade, conforme à lei instituída desde os primeiros tempos da modernidade, era impensável que algo viesse interromper o seu curso, e de repente dá-se uma interrupção. O apocalipse, começamos a perceber, dá-se sob a forma da interrupção: interrupção, por exemplo, do fluxo turístico em Veneza, que antes colapsava sob o peso do turismo e hoje colapsa sob a forma de uma cidade-fantasma. António Guerreiro, Público