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OURIQ

Um diário trasladado

OURIQ

Um diário trasladado

27
Dez19

Das insuficiências do ateísmo


Eremita

Uma criança de quatro anos não perde o sono perante a impossibilidade do Pai Natal. É a finitude da vida que a inquieta e a deixa num pranto inconsolável. A ideia da morte para quem quase não tem a noção do tempo só pode ser a da morte iminente. Perguntava-me ela se iria morrer amanhã e se as pessoas deixariam de morrer se ela se portasse bem. Como se explica que não é assim que o mundo funciona? Convertendo o tempo em distância, fazendo nós num cordel? Usando o número de passos no jogo da macaca? Um passo para o tempo vivido e 20 passos para o tempo que falta viver? Mas será isto solução, se até eu sinto que ela mal começou a viver e já lhe sobram poucos passos? Fico algo ansioso com estes exercícios, começo a pensar que 20 passos é distância que remete para um duelo de pistolas.

Saiu-me mal a fala, um carpe diem com referências ao Rei Leão de remate pouco convicto. Nunca invejei tanto os católicos como esta noite, nem me senti tão incapaz e ridículo. Mentimos à criança sobre o Pai Natal com requintes teatrais para dar substância à mentira, mas dizemos-lhe a verdade sobre a morte. Oh, oh, oh, haverá decisão mais indefensável? Um compromisso absoluto com a verdade seria menos absurdo, ainda que ligeiramente mais cruel. Porque se é para mentir, mais valia mentir duas vezes. E se a lógica fosse a de poupar em mentiras, mais valia sacrificar o barbudo por uma ilusão de eternidade.

Nas últimas décadas, o Pai Natal não se tornou hegemónico entre nós apenas por interesses comerciais, pois foi também um instrumento de secularização. Com esta lavagem cerebral, deitou-se fora o menino Jesus com a água do banho. Pela primeira vez desde há uns bons 30 anos, Cristo faz-me falta e não há Dawkins que me valha. Se o cristianismo é "platonismo para as massas", ou seja, uma simplificação ou infantilização, talvez um catolicismo soft, com as narrativas do Novo Testamento, mas sem o medo e a culpa, sirva melhor às crianças do que a Disney, pois vão sempre a tempo de um desmame autónomo na adolescência.   

Adenda a 31.12.2019: o The New York Times destacou quatro livros infantis sobre a morte. São todos religion free, como convém aos leitores progressistas, mas nenhum dos autores teve a coragem de tratar a morte da criança que lê ou ouve a história. Quem morre é um velhinho ou um bicho e esta fuga ilustra na perfeição o problema que fingem abordar.

24
Dez19

O grande acontecimento do ano


Eremita

2019 terá sido o ano em que mais um idiota (Bolsonaro) tomou as rédeas de um grande país,  o ano da emergência climática, da confirmação de que Michael Jackson foi um pedófilo, o ano da fenomenal  Billie Eilish e da primeira foto de um buraco negro. Terá sido o ano em que Julian Assange tomou banho e em que Tiger Woods regressou às vitórias, o ano em que Notre Dame ardeu e o ano em que os jovens de Hong Kong tentaram resistir à China perante a passividade do mundo inteiro. Terá sido o ano da vitória de Boris Johnson e o ano do quase-impeachment de Trump, mas para o Ouriq foi e será sempre o ano em que, a 16 de Abril, o matador Ricardo Chibanga nos deixou. Chibanga é a nossa apropriação cultural avant la lettre e este laço ainda existirá quando a poliítica identitária tiver passado de moda. 

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fonte

 

 

22
Dez19

Nunca dependas da escrita para sobreviver


Eremita

Muitos comentadores transformaram a censura de Ferro Rodrigues a André Ventura num deslize de uma alta figura da nação que serviu para promover um populista. Acredito que o dr. Ventura seja um populista, mas se o dr. Ferro representa a nação, coitadinha desta. Nem falo do currículo democrático do dr. Ferro, que culminou naturalmente neste recente e grotesco acto. Falo daquilo de que sempre evitei falar: a aparência da personagem. Olhem para qualquer imagem do dr. Ferro. Atentem nos pormenores, depois no aspecto em geral. Sei que estes não são os critérios fundamentais da avaliação política. Sucede que há limites. O dr. Ferro ultrapassa estes com o mesmo empenho com que ultrapassou os outros. É exacto que, no invólucro e no conteúdo, o dr. Ferro representa o regime – e sobretudo o estado em que o regime se encontra. Alberto Gonçalves

Ainda será possível perder a razão quando se critica Ferro Rodrigues? Sem dúvida. Estamos perante o equivalente retórico de atirar sobre a barra quando a bola saltitava na pequena área com o guarda-redes já por terra. Tamanha boçalidade consciente só acontece quando se escreve para seduzir a falange. Alberto Gonçalves é dos cronistas menos livres que escrevem hoje em Portugal e este exemplo ilustra o que pode acontecer quando a primeira regra do escritor falha. 

15
Dez19

O direito premial e o "perdão" fiscal


Eremita

Apesar de Portugal ser o país que demorou mais tempo a condenar um corrupto do que quem o denunciou (sem nunca ter sido corrompido), ainda não tenho uma opinião formada sobre o direito premial, em parte porque o jornalismo está a falhar e os críticos desta ideia já introduziram muito ruído nesta discussão (e.g., o embaixador Seixas da Costa e os Pedros do Bloco Central da TSF). O alarmismo e defesa dos princípios do Estado de Direito destas figuras públicas tem sido notável e percebe-se a pose para a fotografia de quem já se imagina como um dos raros nobres cidadãos que nos protegem das hordas de populistas. Mas falta destrinçar com cuidado as diferenças entre a "delação premiada" à Brasileira e o projecto da Ministra da Justiça. Como falta um apanhado de direito comparado sobre o que se faz noutros países, pois o conhecimento que o cidadão tem é o que apanha de ouvido ao ver filmes norte-americanos. Há discussões que pedem respostas empíricas. Qual é a percentagem de falsas denúncias em países com e sem direito premial? O direito premial tem um efeito dissuasor? Como fica a confiança nas instituições e indivíduos? E as condenações na imprensa? Tudo isto pode ser respondido com pesquisa, inquéritos e sociologia, sem se ficar pelos achismos.

Também é verdade que uma oposição intransigente de princípio ao direito premial deve ser louvada. Só lamento não ter visto esses críticos particularmente incomodados com o perdão fiscal, lançado por Sócrates e continuado por Passos e Costa, que permitiu taxar parcialmente dinheiro extraviado (1, 2). Dir-me-ão que o perdão fiscal não levanta as dúvidas de inconstitucionalidade associadas ao direito premial, mas são duas ideias têm de ser comparadas pois coincidem no essencial: compensar o criminoso que acaba por dar algo em troca à sociedade. 

 

14
Dez19

Everything we've always Known About Sex* (*but we're now afraid to say)


Eremita

Quem hoje escreve da forma mais livre e heterodoxa sobre sexo neste país é o António Guerreiro. Haverá por aí libertinos sob pseudónimo e outros que, ao abrigo do registo confessional, dizem coisas, mas o António pensa sobre estes temas como mais ninguém. Em tempos de puritanismo crescente, é preciso coragem para lembrar a inevitabilidade da violência, da mentira e das relações de poder no sexo, e defender uma esfera de transgressão sadia — por oposição à acidental transgressão sádica que Guerreiro menciona na passagem que cito. Nem sempre concordo com ele, sobretudo quando a sua opinião deixa transparecer um certo saudosismo pelo tempo em que as orientações sexuais minoritárias viviam na clandestinidade, mas é sempre com prazer que o leio sobre estes temas.

A mais comum forma de violência sexual no espaço conjugal é a sua forma negativa, isto é, a total ausência de sexo e os interditos discursivos que essa situação cria, para que não se quebre uma união fundada na inércia, outras vezes em razões pragmáticas, e mais raramente noutros afectos respeitáveis que a família cristã exalta porque tem uma sabedoria antiga que lhe diz que ou as coisas tendem para essa pretensa neutralidade (raramente feliz) ou então o desfecho é o divórcio e a delapidação de patrimónios (às vezes, até do património parental). Se estes inquéritos, determinados por um neo-puritanismo, acabam por assimilar boa parte das atitudes e rituais sexuais a formas de violência, mais não seja porque deixam aos inquiridos a liberdade de estabelecerem como violência o que sentem como tal, então eles acabam, sem o saber, por entrar na lógica da transgressão, do gozo que advém de quebrar as normas; ou então mostram uma embaraçosa cumplicidade com o pensamento de Sade (Sade, mon prochain, que título revelador!) e a sua maneira de enunciar, classificar, racionalizar e articular através de um discurso as práticas sexuais. É o triunfo do plaisir de tête. E assim o neo-puritanismo do nosso tempo revela-se muito mais apto a alimentar as formas mais extremas de violência sexual do que a permissividade promovida pelos discursos e as práticas da revolução sexual. António Guerreiro, Público

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