Uma criança de quatro anos não perde o sono perante a impossibilidade do Pai Natal. É a finitude da vida que a inquieta e a deixa num pranto inconsolável. A ideia da morte para quem quase não tem a noção do tempo só pode ser a da morte iminente. Perguntava-me ela se iria morrer amanhã e se as pessoas deixariam de morrer se ela se portasse bem. Como se explica que não é assim que o mundo funciona? Convertendo o tempo em distância, fazendo nós num cordel? Usando o número de passos no jogo da macaca? Um passo para o tempo vivido e 20 passos para o tempo que falta viver? Mas será isto solução, se até eu sinto que ela mal começou a viver e já lhe sobram poucos passos? Fico algo ansioso com estes exercícios, começo a pensar que 20 passos é distância que remete para um duelo de pistolas.
Saiu-me mal a fala, um carpe diem com referências ao Rei Leão de remate pouco convicto. Nunca invejei tanto os católicos como esta noite, nem me senti tão incapaz e ridículo. Mentimos à criança sobre o Pai Natal com requintes teatrais para dar substância à mentira, mas dizemos-lhe a verdade sobre a morte. Oh, oh, oh, haverá decisão mais indefensável? Um compromisso absoluto com a verdade seria menos absurdo, ainda que ligeiramente mais cruel. Porque se é para mentir, mais valia mentir duas vezes. E se a lógica fosse a de poupar em mentiras, mais valia sacrificar o barbudo por uma ilusão de eternidade.
Nas últimas décadas, o Pai Natal não se tornou hegemónico entre nós apenas por interesses comerciais, pois foi também um instrumento de secularização. Com esta lavagem cerebral, deitou-se fora o menino Jesus com a água do banho. Pela primeira vez desde há uns bons 30 anos, Cristo faz-me falta e não há Dawkins que me valha. Se o cristianismo é "platonismo para as massas", ou seja, uma simplificação ou infantilização, talvez um catolicismo soft, com as narrativas do Novo Testamento, mas sem o medo e a culpa, sirva melhor às crianças do que a Disney, pois vão sempre a tempo de um desmame autónomo na adolescência.
Adenda a 31.12.2019: o The New York Times destacou quatro livros infantis sobre a morte. São todos religion free, como convém aos leitores progressistas, mas nenhum dos autores teve a coragem de tratar a morte da criança que lê ou ouve a história. Quem morre é um velhinho ou um bicho e esta fuga ilustra na perfeição o problema que fingem abordar.