É possível que discussões que deveriam ser sobre estética se desvirtuem quase sempre em polémicas repetitivas sobre a liberdade de expressão porque as primeiras são mais exigentes e as segundas estão mais perto das emoções. Sejamos francos: em território nacional, a Missa em Si menor, de Bach, fez verter menos lágrimas do que Sonhos de Menino, um dos plágios de Tony Carreira. Suspeito também que quem tente manter a discussão no plano da estética seja acusado de elitista, o que é muito menos proveitoso do que dar ares de paladino da liberdade de expressão. Assim, sempre que um artista nos propõe um trabalho polémico, criticá-lo tende a ser visto como censura e vai-se da estética à ética num ápice. Geralmente, aparece depois um humorista a teorizar sobre a liberdade de expressão, dizendo-nos que as "palavras não são actos" e que censurar é contraproducente porque nos permite identifcar os perigosos energúmenos que, de outro modo, ficariam caladinhos e a salvo da humilhação pública. O humorista, por ser o canário da mina onde se explora o filão do politicamente correcto, sente-se legitimado a repetir este discurso ad nauseam mesmo quando o assunto deveria ser outro. Isto é um problema, porque a crítica pode ser feita sem pressupor uma proibição que vá além da censura social e se perde sempre uma excelente ocasião para discutir o gosto e a função da arte subversiva.
O último episódio deste fenómeno recorrente foi a discussão sobre a letra e o vídeo do tema BFF, do rapper Valete. Resumindo para quem ainda não viu: um homem, depois de avisado de que a sua mulher o anda a trair, arma-se com uma caçadeira e supreende a adúltera na cama com o melhor amigo dele. A tensão cresce até ao momento em que a mulher se vê com os canos da caçadeira na boca e diante da probabilidade de uma bala lhe perfurar a traqueia, como nos informa Valete — esquecendo-se que daquele ângulo seria mais provável perfurar outros órgãos mais vitais, mas podemos estar perante um caso de deformação profissional de quem ganha a vida por ter muita garganta. Retomando: a arma não chega a ser disparada e percebe-se depois que fora um sonho dele, mas que a traição dela e do best friend forever era real. Durante o governo de Passos Coelho, Adolfo Luxúria Canibal fez algo parecido no tema Pelo Meu Relógio São Horas de Matar, chegando inclusivamente a concretizar mortes no vídeo. A diferença essencial entre os dois vídeos é o alvo: Valete escolheu a mulher adúltera numa altura em que se condena cada vez mais o crime passional, e Adolfo optou por matar políticos em plena crise económica. Por outras palavras, Valete subiu a parada, indo contra a maré, pois o assassínio de um político imaginário e corrupto — embora não o assassínio real de políticos carismáticos como JFK, Luther King ou Olof Palme — comove menos do que a mulher morta num contexto de violência doméstica.
Isto continuará um dia; não sei bem quando, mas sei para onde vou.