Nuno Bragança escrevia com graça
Vasco M. Barreto
Não surpreende que o eremita tivesse decretado férias grandes como quem anuncia uma interrupção dos trabalhos no Ouriq. Desde pelo menos um dos nossos momentos fundadores que conhecemos os tiques autocráticos da figura. Pois bem, eu ainda não fui de férias e o Judeu, que estará veraneando em parte incerta mas nunca será um turista, a qualquer momento pode enviar um postal ilustrado que se leria aqui como um manifesto. Não há férias grandes. Reformulo, pegando no "machado", a metáfora preferida dos praticantes de uma curiosa escrita de violência desproporcionada, gratuita e inconsequente (enfim, ritualizada): as férias grandes são para os funcionários públicos sem ambição.
Continuemos a socar inimigos imaginários. José Pacheco Pereira escreveu um texto preguiçoso e desinspirado sobre o acordo ortográfico. Ninguém espera do nosso único intelectual público um estilo esmerado, a força vem-lhe da cultura, do largo espectro de interesses e da facilidade com que lida com as ideias, mas há limites e "não me venham com..." traumatiza até o leitor veterano. Se era para homenagear Vasco Graça Moura, mais valia ter optado por um tema menos batido, pois a comparação com outras redacções de qualidade superior torna-se inevitável. Mas é verdade que a originalidade pode ser vista como uma busca de novos nichos ecológicos que se alimenta do instinto de sobrevivência da espécie. É por isso que a associamos à juventude ou aos perpetuamente marginalizados e Pacheco não cumpre nenhuma das condições.
Agora em mixed martial arts sem luvas. Quantos minutos demorará Alberto Gonçalves a escrever uma crónica? Já terão reparado que é sempre a mesma crónica, o que desperta uma inquietação recorrente: quanto saca ao Observador? O eterno sketch, que dá ao escritor uma renda, não é um recurso ao alcance de todos. Primeiro, é preciso identificar e responder a uma procura do mercado. Segundo, poucos conseguem conjugar a recusa de pensar a actualidade com uma capacidade de observação e sentido de humor acima da média. Quando não resulta em inacção, a conjugação de forças antagónicas cria invejáveis máquinas de encher chouriços.
Termino – pensemos num imaginário duelo novecentista de pistolas – com Vasco Pulido Valente, que pôs em causa o sentido de humor de Nuno Bragança. O Público anda mesmo a abusar das mentiras. Certo, a queda de popularidade de VPV lembra a do PCP na incapacidade de renovação geracional que reflecte; para cada dois leitores de VPV que morrem, haverá um novo leitor ou nem isso, talvez um terço de leitor. Certo, os números das tiragens e assinaturas de jornais fazem de Portugal um país de brincadeira. Mas tenhamos presente que só existem 5 mil exemplares da obra completa de Nuno Bragança nas casas dos portugueses e que deste universo doméstico potencial de 20 mil pessoas, menos de mil terão lido passagens do livro e menos de um (talvez um terço) se sentirá motivado para fazer o fact-checking destes faits divers, if you follow my drift – Nuno Bragança, muito dado a passagens noutras línguas, jamais optaria por esta concatenação de expressões estrangeiras feitas, note-se.
Um dia investigarei se tem pernas a tese de que Bragança é o Joseph Heller português. Não sei se merece sair da "clandestinidade"; esse impulso ressuscitador caprichoso, tão frequente em académicos e jornalistas de cultura, só aumenta a nossa ansiedade. Sei apenas que o homem escrevia com graça. Não há em A Noite e o Riso a inteligência de Sinais de Fogo e talvez a componente infanto-marialva da graça de Bragança torne a prosa datada, mas tenho a certeza de que ainda arranca sorrisos e talvez até aquela rara gargalhada que rompe o silêncio. Em todo o caso, desconfio sempre dos ajustes de contas entre conterrâneos ou gente da mesma geração, sobretudo quando o visado está morto. VPV e Bragança rivalizavam nas páginas de O Tempo e o Modo? Giro, mas e daí? Terá Bragança roubado uma namoradinha a VPV em 1967? Não se pode descartar, mas so what? VPV, que passou algumas vezes a mão pela babugem da ficção (é dele o guião de O Delfim), que é um literato (relê a obra completa de Eça todos os fins-de-semana e sentiu necessidade de criticar o bestseller Equador), responderá sempre que nunca inalou – Bragança também não faria esta amálgama de metáforas. Desconfio que o nosso grande catastrofista terá mais pena de não ter escrito um romance – o seu Glória, segundo o freudianíssimo prefácio do autor, não é um romance – do que de não ter produzido uma obra de referência sobre Hitler, ambição sensaborona e megalómana por ele confessada em jeito de balanço de vida. Nunca admitirá a outra frustração, que faria dele uma Clara Ferreira Alves, o exemplo nacional do romancista que não chega a escrever um romance, o que seria insuportável para um homem que cultiva alguma misoginia nos ódios de estimação. Aliás, corrija-se já o lapso: depois de décadas de hesitação, até Clara Ferreira Alves publicou entretanto um romance. Bragança mostrou outra garra. Morreu novo e pode estar na "clandestinidade", mas cumpriu a vocação. Teve a coragem de publicar ficção e consta que se levantava às cinco da manhã para escrever – isto tresanda a inverdade, mas é irrelevante. Ladies and gentlemen of the jury, apresento-vos duas passagens de A Noite e o Riso. O assunto é menor, mas como ir de férias quando até os historiadores corrompem a verdade?
Exhibit A
Não se ficou nisso, é óbvio: pistola à cinta só por si não soluciona briga, coldre à cowboy só tem sentido funcional. Destarte, em hora e meio o nosso Rato já pusera cinco virgens a imaginar loucuras. Escolhendo a que, dentre elas, reunia mais calibre de apelidação e beleza mais sumida, acabou encaminhando-a até um extremo do parque, que era vasto e tinha buxos seculares. Ali, a jovem delirante recebeu a prenda, inestimável: ver cair o único véu que a separava dos volumes titilantes, e contemplá-los com afagos de noviça. "Depois disso, generalizei" – assim ouvi mais tarde o Júlio, a epitafiar a sua carreira.
Exhibit B
A coisa passou-se num ponto de Hábitos Suíços. O Doutor escreveu no quadro os dados do problema:
«Quando um pobre nos quer lamber as botas, devemos ou não untá-las previamente?
Em caso afirmativo, justifique a resposta.»
Como eu estava sentado ao lado do melhor aluno, decidi aproveitar esse acaso para lhe perscrutar as qualidades racionais: fingindo escrever, olhava de soslaio o ponto dele. Não tardei a ficar completamente absorvido pelo que aquele fedelho magro ia transportando dos miolos para o papel. Lembro-me perfeitamente, era assim:
1.1 Se o pobre me lambe as botas, espera que eu espere isso.
1.2 Se eu untar as botas com nada, o pobre pode pensar que eu sou oudistraído ou
desconhecedor dos costumes ou
desprezador da miséria.1.3 Qualquer destes três pensamentos pode fazer zangar o pobre, ou seja, levá-lo a cometer algum pecado.
1.4 Para impedir o pobre de pecar é pois necessário untar as botas que ele vai lamber.2.1 Se eu untar as botas com qualquer dos produtos com que habitualmente elas se untam, o resultado pode ser idêntico ao de 1.2, com as nefastas consequências de 1.3.
2.2 Visto que devo untar as botas com um produto que me atrevo a chamar não-botoso, há que saber se este deve ser salubre ou insalubre.
2.3 Se o produto foi insalubre, o pobre pode apanhar uma doença e morrer. Ora, não se deve matar pobres, porque cada um deles representa esmolas possíveis, quer dizer Boas Acções. Como dizia o Poeta, «os pobres são os degraus da escada que conduz os ricos ao Céu.»
2.4 O produto deve, portanto, ser salubre, a fim de preservar a saúde dos pobres, a qual é a garantia físico-química da salvação dos ricos.3.1 Se o produto foi muito salubre, isso pode ter as seguintes consequências:
3.1.1 robustecer demasiadamente o pobre;
3.1.2 atrair um numero excessivo de pobres à lambedela.
3.2 A consequência 3.1.1 é de evitar, porque um pobre muito robusto decide-se a deixar de ser pobre, o que é um mal pela razão apontada em 2.3
A consequência 3.1.2 também é de evitar, pelo mesmo motivo e ainda porque, quando o número de pobres lambedores aumenta muito, a paciência do rico lambido diminui bastante.3.3 O produto deve, pois, ser moderadamente salubre, até porque a moderação é a principal qualidade a exigir a um pobre.