Defender o Estado de Direito é um exercício seguro, tão virtuoso como defender a foca bebé, elogiar Malala ou mostrar simpatia por meninos tailandeses aprisionados numa gruta. Daí que Pedro Marques Lopes defenda o Estado de Direito várias vezes por dia; uma pessoa diz "Estado de Direito" e, naturalmente, incha logo um pouco. Ao inverter o ónus da prova no espaço público, manchando a reputação de homens que podem até estar inocentes, o #MeToo aparentemente agride o Estado de Direito. Gostaria de expor uma tese oposta: o #MeToo complementa o Estado de Direito. O Estado de Direito assenta numa ilusão, a ideia de que os homens e as mulheres são iguais. É uma ilusão estruturante, tal como a noção de livre arbítrio, independentemente da sua veracidade. Em teoria e potencialmente, a noção de igualdade resolve inúmeras questões, menos as que decorrem directamente da desigualdade. A desigualdade é aqui entendida como uma característica de base biológica que distingue estatisticamente os homens das mulheres. Para evitar mal-entendidos, friso tratar-se de uma diferença estatística, isto é, característica de grupos e não definidora de um indivíduo. E para evitar perder tempo com discussões inúteis, assumo que estamos de acordo quanto à irrefutabilidade da base biológica destas diferenças. Concretizando: os homens são mais fortes e mais agressivos e violentos do que as mulheres. Expresso um “pessimismo andrológico” que me parece realista. E daqui decorre ia que o Estado de Direito só conseguiria eliminar esta assimetria se violasse a sua própria natureza, isto é, tornando-se uma distopia em que a privacidade deixasse de existir por todos serem vigiados a toda a hora e em todo o lugar. A nova sensibilidade criada pelo #MeToo atenua a assimetria armando as mulheres com o poder dissuasor da difamação. Não é uma novidade, pois são inúmeros os relatos de difamação do ex-companheiro pela mulher no caso de disputa pela guarda dos filhos, é apenas a generalização desta ameaça a todos os homens.
Por motivos diferentes, os críticos e os defensores do #MeToo jamais reconhecerão a virtude do seu efeito dissuasor. Os primeiros porque têm a ilusão de que a violência masculina se corrige com o cavalheirismo e a protecção das mulheres, isto é, com virtudes masculinas, sendo evidente o paralelo com a noção de caridade como panaceia para a pobreza. Os segundos porque o feminismo radical veicula a ideia de que não há diferenças biológicas entre os homens e as mulheres. Mas creio que será este o principal legado do #Metoo: armar as mulheres, fazê-las capazes de potencialmente tornar a vida de um homem num inferno, tal como um homem pode traumatizar a mulher que viola. É uma visão horrível do mundo, incivilizada, que ninguém quer reconhecer. Daí a insistência em jeito de escape na defesa do Estado de Direito, que nunca poderá resolver a assimetria da força física e da agressividade, sobretudo quando se manifestam como pulsão sexual.
Serão efémeras todas as outras virtudes do #MeToo, nomeadamente a possibilidade de as mulheres expressarem a sua angústia, raiva e frustração enquanto vítimas de agressões sexuais, que tem um efeito catártico importante, e também a percepção dos homens quanto à dimensão deste problema. O que persistirá é o novo medo que os homens passaram a sentir. Não estamos diante de um daqueles simulacros ridículos a que alguns homens se submetem para "perceberem" ou serem "solidários" com mulher durante a gravidez e a amamentação, como quando partilham alguma restrição dietária ou colocam um colete com tetinas ao nível dos mamilos. Medo. O melhor título de uma tese de doutoramento que conheço - sobre um tema que não vem ao caso - é "Putting fear in its place". Foi o que aconteceu. É mesmo a sensação que mais se aproxima de uma experiência empática real de apreensão ou temor, mas também a única forma de, na prática, com este novo medo que os homens têm das mulheres, se atenuar o medo que as mulheres sempre sentiram dos homens sem beliscar em demasia o Estado de Direito.